Título: 'Republicanizar a República'
Autor: Marco Maciel
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Buscar sempre, entre o que nos separa, aquilo que nos pode unir parece constituir o grande objetivo da política, porque, se queremos viver juntos na divergência, princípio vital da democracia, estamos fadados a nos entendermos. Impõe-se assim acreditar na força das idéias, compreender que a política não pode ser o meio da conservação, mas de transformação, e que a firmeza das convicções não deve ser empecilho para o entendimento capaz de transformar o poder em instrumento de justiça, igualdade e paz social. Faço tais observações por considerar que episódios significativos incorporados à nossa História brotaram da provisão da capacidade de entendimento de homens públicos de se anteciparem às crises e, de modo sintônico, resolvê-las em consonância com as aspirações nacionais. Fazer memória desses fatos que se transformaram em datas paradigmáticas serve de pedagogia cívica e ajuda a iluminar o futuro, que se nutre daquilo que fica do que passou.

Vale anotar a coincidência de refletirmos sobre as duas décadas da Nova República, idealizada por Tancredo Neves e efetivada por José Sarney, no mesmo instante em que transcorrem os 150 anos do Gabinete de Conciliação, articulado e presidido pelo Marquês de Paraná, notável pró-homem das Minas Gerais, estadista que o presidente Tancredo Neves muito admirava - e revelara, se tempo houvesse, a intenção de biografá-lo.

Pena que a obra do Marquês de Paraná, cujo Gabinete tanto contribuiu para a estabilidade política do Segundo Reinado, por meio de pacto entre os partidos do Império, não se tivesse concluído, interrompida em razão de seu súbito desaparecimento nos idos de 1856.

A Nova República foi fruto de amplo acordo aberto aos partidos políticos e à sociedade civil, tendo como núcleo o PMDB e a Frente Liberal, assim cognominada a dissidência do PDS que se reuniu em torno da expressiva liderança do então vice-presidente da República, Aureliano Chaves. O documento constitutivo desse pacto, intitulado Compromisso com a Nação, estabelecia, ao lado de preceitos doutrinários, objetivos programáticos essenciais para que o Brasil se reinserisse no Estado Democrático de Direito, promovesse o encontro entre o governo e a sociedade, pela adoção de medidas também no campo social, cultural e econômico. Para tal era indispensável concluir, sem ressentimento, o processo de transição para a democracia, com o término do regime militar.

O percurso havia sido encurtado com a promulgação da Emenda Constitucional n.º 11, de 1978, resultado da chamada "missão Petrônio Portella", que autorizara a revogação dos atos institucionais e complementares, garantira a anistia, restabelecera as condições para a pluralidade partidária e assegurara o livre funcionamento dos sindicatos, entre outros dispositivos contendo inequívocos avanços político-institucionais.

É tempo de relembrar o destemor, a lucidez e, como diria Machado de Assis, o "instinto de nacionalidade" que caracterizou os integrantes da Aliança Democrática e o apoio recebido, por intermédio de lídimas instituições - a ABI, a CNBB, a OAB, a SBPC, a imprensa, as universidades e os sindicatos, entre outras organizações da sociedade civil.

Se é verdade que o falecimento de Tancredo Neves causou enorme comoção, deixou, todavia, um exemplo a nos inspirar e um programa a cumprir. É de realçar, por dever de justiça, a exemplaridade de gestos e ações de seu companheiro de jornada, senador José Sarney. Investido na chefia de governo, o então vice-presidente transformou o Compromisso com a Nação na bíblia do governo.

Dentre os objetivos fundamentais, impõe-se sobrelevar a convocação da Constituinte, por mensagem do presidente Sarney ao Congresso Nacional, da qual resultou a Carta de outubro de 1988, que Ulysses Guimarães chamou de "Constituição cidadã". Com ela encerramos um longo, todavia coroado de êxito, processo que assegurou ao País viver sob um autêntico Estado Democrático de Direito e instaurando uma verdadeira democracia no Brasil.

A nossa transição para a democracia - ouso afirmar sem receio de contestação - foi, na segunda metade do século 20, tanto em extensão quanto em densidade, a mais bem-sucedida, mesmo se comparada com a da Espanha, cujos cânones foram fixados nos Pactos de Moncloa.

Ensina a Filosofia, não desacompanhada da Sociologia e da História, que ao desatar o nó da democracia novas demandas emergem com intensidade e não há outra resposta senão aprofundar, em sua essencialidade, o exercício da democracia. Os problemas da democracia exigem mais democracia. Daí insistir na necessidade de conferir, na semântica dos nossos tempos, urgência às reformas institucionais, cuja inadiabilidade está cada vez mais visível.

Precisamos, depois de consolidada entre nós a democracia, enquanto processo, fertilizá-la substantivamente, com os instrumentos da governabilidade. É indispensável mudar o sistema eleitoral para que o voto deixe de ser "fulanizado"; vertebrar verdadeiros partidos enquanto canais de interlocução entre a sociedade e o Estado; aperfeiçoar o sistema de governo para melhorar o desempenho dos Poderes e seu relacionamento no modelo presidencialista que praticamos; redesenhar o Estado federal para compatibilizá-lo com as exigências de descentralização; e, finalmente, revigorar as instituições republicanas, isto é, "republicanizar a República", para eliminar a incerteza jurídica e assegurar a todos plena cidadania.

Marco Maciel é senador da República