Título: Informação versus secretismo
Autor: Carlos Alberto Di Franco
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Acabo de reler um texto belíssimo e de grande atualidade: A imprensa e o dever da verdade, de Ruy Barbosa. Recomendo-o vivamente a todos os que se preocupam com a ética informativa e as relações entre o jornalismo e o poder. Não resisto, caro leitor, à vontade de aguçar sua curiosidade. "A imprensa", dizia Rui Barbosa, "é a vista da Nação. Por ela é que a Nação acompanha o que lhe passa ao perto e ao longe, enxerga o que lhe malfazem, devassa o que lhe ocultam e tramam, colhe o que lhe sonegam, ou roubam. (...) O poder não é um antro: é um tablado. A autoridade não é uma capa, mas um farol. A política não é uma maçonaria, e sim uma liça. Queiram, ou não queiram, os que se consagraram à vida pública, até à sua vida particular deram paredes de vidro. Agrade, ou não agrade, as constituições que abraçaram o governo da Nação pela Nação têm por suprema esta norma: para a Nação não há segredos; na sua administração não se toleram escaninhos; no procedimento dos seus servidores não cabe mistério; e toda encoberta, sonegação ou reserva, em matéria de seus interesses, importa, nos homens públicos, traição ou deslealdade aos mais altos deveres do funcionário para com o cargo, do cidadão para com o país."

Pois bem, caro leitor, um abismo separa os ideais de Ruy Barbosa dos usos e costumes da Ilha da Fantasia. Recentemente, quase que à surdina, deputados aprovaram em votação simbólica a Medida Provisória 228, que dá ao governo o poder de manter documentos classificados como ultra-secretos indefinidamente sob sigilo. Uma laje de chumbo protegerá os documentos que possam ameaçar "a soberania, a integridade territorial nacional ou as relações internacionais do país". Até aí, nada contra. Afinal, há circunstâncias em que documentos públicos precisam ser mantidos em segredo. Impõem-se, contudo, algumas condições: a exceção ao princípio da publicidade dos atos de governo deve ser excepcional, e o sigilo não deveria estender-se além de um prazo claramente fixado em lei. A medida provisória, no entanto, entrega a uma comissão do próprio governo decidir quais são esses documentos e, ademais, não determina que essa comissão estabeleça um novo prazo. Quer dizer: o segredo pode eternizar-se.

O secretismo de Estado é um perigo para a democracia. Governos, independentemente de seu colorido ideológico, sucumbem, freqüentemente, à tentação do autoritarismo. Como lembrei neste espaço opinativo, em passado recente (no governo Fernando Henrique Cardoso), imprensa e Ministério Público foram ameaçados com tentativas de aprovação da chamada Lei da Mordaça. O PT, então, usava e abusava de seu poderoso estilingue contra as vidraças do Palácio do Planalto. Lei da Mordaça, nem pensar. E as CPIs, que se multiplicavam como coelhos, eram defendidas como instrumento indispensável no combate à corrupção. Agora, instalado no poder, a coisa mudou. Abertura de CPI virou conspiração para derrubar o governo. E a Lei da Mordaça se transformou em "instrumento legítimo para controlar a irresponsabilidade da mídia e dos promotores".

A sociedade assiste, agora, às tentativas de ocultar supostas relações entre o PT e as Farc, grupo guerrilheiro colombiano ligado ao narcotráfico, com o manto protetor do segredo de Estado. Em reunião com parlamentares, o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Jorge Armando Félix, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), delegado Mauro Marcelo de Lima e Silva, confirmaram a existência de um documento oficial que registra uma promessa de doação de US$ 5 milhões para a campanha presidencial, em 2002. O documento, registrado com o n.º 0095, é de abril de 2002 e integra os arquivos da Abin. Não sei se, de fato, o PT e as Farc acertaram seus ponteiros. O que me parece absurdo, e suspeito, é procurar encerrar o assunto com o carimbo de segredo de Estado. O governo deveria ser o primeiro a estimular uma autêntica investigação sobre o suposto esquema.

O princípio da presunção da inocência deve ser garantido, mas não à custa da falta de transparência. O princípio constitucional da publicidade, pelo qual qualquer cidadão tem direito a obter das autoridades públicas informações de interesse pessoal e geral, é, na expressão do ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), "verdadeira pedra angular sobre a qual se edifica o Estado Democrático de Direito, pois a exigência de transparência na prática governamental qualifica-se como prerrogativa inalienável que assiste a todos os cidadãos".

A informação é a base da sociedade democrática. Precisamos, sem dúvida, melhorar, e muito, os controles éticos da notícia, combater as injustas manifestações de prejulgamento, as tentativas de transformar a mídia em palanque ideológico ou passarela para o desfile de vaidades, eliminar a precipitação que pode desembocar em autênticos assassinatos morais. Mas, ao mesmo tempo, não podemos deixar de criticar as tentativas de cerceamento do dever ético da investigação. O sistemático veto do PT à instalação de CPIs e às ações do Ministério Público para investigar supostas irregularidades não contribui para a imagem do governo. Basta pensar, por exemplo, na hipersensibilidade do partido às apurações dos casos Waldomiro e Celso Daniel.

O III Encontro Regional sobre Liberdade de Imprensa, organizado pela Associação Nacional de Jornais (ANJ) com o apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), marcará o lançamento da Rede em Defesa da Liberdade de Imprensa na Região Sul. O evento ocorrerá no dia 11 próximo, em Porto Alegre. O tema do encontro será "Acesso à Informação Pública". A reflexão, certamente, contribuirá para projetar um facho de luz nas nem sempre fáceis relações entre o jornalismo e o poder.

Carlos Alberto Di Franco, diretor do Master em Jornalismo, professor de Ética da Comunicação e representante da Faculdade de Comunicação da Universidade de Navarra no Brasil, é diretor da Di Franco - Consultoria em Estratégia de Mídia Ltda. E-mail: difranco@ceu.org.br