Título: O Fisco e o trabalho
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/03/2005, Notas & Informações, p. A3

Q uando entidades de classe e corporações profissionais anunciaram a decisão de argüir a inconstitucionalidade da Medida Provisória 232, sob o argumento de que criação ou aumento de impostos não pode ser feito por MP, a Receita Federal habilmente tentou deslocar a discussão do campo jurídico para o político, afirmando que a elevação da base de cálculo da carga tributária dos prestadores de serviço era uma "questão de justiça". Em sucessivas entrevistas, o secretário Jorge Rachid deu a entender que muitos profissionais teriam criado microempresas só para pagar menos Imposto de Renda. Por isso, o aumento proposto pela MP 232 teria por objetivo assegurar a isonomia de tratamento entre os trabalhadores com carteira assinada e aqueles que emitem notas fiscais como pessoas jurídicas. O problema é que esse argumento conflita com a realidade. Pela lógica da Receita Federal, o mundo do trabalho seria dividido apenas entre patrões e empregados, de tal modo que os trabalhadores por conta própria teriam, obrigatoriamente, de ser classificados numa dessas duas categorias. No entanto, ao abrir caminho para a expansão em progressão geométrica do setor de serviços, o extraordinário desenvolvimento tecnológico das últimas décadas liquidou com essa rigidez. Com a crescente divisão e subdivisão da economia em cadeias produtivas e ramos altamente especializados, as formas de remuneração mudaram, levando à substituição do critério de tempo de serviço pelo da produtividade. Atividades sucateadas pela utilização massiva do computador deram lugar a novas profissões. E empregos com carteira assinada foram substituídos por contratos de parceria.

Por isso, muitas empresas tiveram de redimensionar suas políticas de recursos humanos, retendo como empregados só aqueles que trabalham nas atividades-fim. Diante da necessidade de reduzir custos e contar com serviços altamente diferenciados, para sobreviver em mercados cada vez mais competitivos, elas terceirizaram suas atividades-meio, como segurança, alimentação, treinamento, manutenção, transporte, etc. Por um lado essa estratégia propiciou significativos ganhos de produtividade para a iniciativa privada e, por outro, permitiu que os demitidos pela informatização do setor industrial se recolocassem no mercado de trabalho como prestadores dos mais variados tipos de serviço.

Esse fenômeno é mundial. Em todos os continentes, as empresas mais eficientes abandonaram suas rígidas estruturas verticais. E, na medida em que passaram a se concentrar somente naquilo que não podem comprar fora, formaram redes de fornecedores de suprimentos e serviços prestados de modo casual, intermitente ou por empreitada - até multinacionais (outsourcing). Evidentemente, o Brasil não ficou imune a essas transformações. Tanto que, em 2002, o IBGE identificou a existência de 3,1 milhões de empresas sem empregados, envolvendo cerca de 4,3 milhões de proprietários e sócios.

Diante desses números, que revelam a flexibilidade e a complexidade do mundo do trabalho nos dias de hoje, tentar tutelá-lo por meio de normas rígidas e padronizadoras, como quer a Receita, em nome da isonomia de tratamento fiscal, não é só um erro. É uma injustiça. Como afirmou o professor José Pastore, em artigo no Estado, em sua imensa maioria os prestadores de serviço não são espertalhões que criaram empresas para pagar menor imposto. São, isto sim, trabalhadores que deixaram de ser empregados não por opção, mas porque tiveram de se adaptar ao impacto da revolução da informática nas técnicas de produção.

É por isso que não faz sentido a proposta de acordo apresentada pelo governo para tentar aprovar a MP 232, comprometendo-se a reduzir parte do aumento da carga tributária dos prestadores de serviço que gastam mais de 20% de seu faturamento com pessoal. Se já trabalham sós, sem direito a férias e outros benefícios, é porque não podem pagar empregados ou porque não precisam deles. Portanto, insistir em aumentar o Imposto de Renda dos trabalhadores por conta própria ou obrigá-los a contratar colaboradores, como condição para que possam reduzir o porcentual desse tributo, é mais do que submetê-los a uma camisa-de-força. É tratar com violência, sob o manto diáfano da "isonomia" e da "justiça", quem conseguiu sobreviver à custa do próprio esforço às mudanças sofridas pela economia contemporânea.