Título: São Paulo, no rastro de Curitiba
Autor: Evandro Fadel
Fonte: O Estado de São Paulo, 28/03/2005, Metrópole, p. C1

Inovação foi um dos termos mais repetidos nas últimas décadas em Curitiba. Este ano, a cidade, reconhecida mundialmente por seu planejamento urbano, comemora 40 anos de experiências urbanísticas e, apesar do tempo, dizem os especialistas, ainda é o melhor exemplo no Brasil. Para o braço executor das principais mudanças na capital paranaense, o ex-prefeito Jaime Lerner, a cidade é o "desafio da inovação constante". Agora, 34 anos depois, Lerner, que chegou à prefeitura em 1971, tem um novo desafio: a convite do prefeito de São Paulo, José Serra, vai usar a experiência de Curitiba para mudar a cara do centro da maior cidade do País.

É de seu escritório no Bairro Cabral, em Curitiba, que Lerner vem projetando um futuro para São Paulo. "Estamos começando a pensar soluções para a Cracolândia. Não tive mais do que três reuniões, mas cada vez mais vem crescendo nosso envolvimento", disse o arquiteto e urbanista, afastado, pelo menos temporariamente, da política. O pouco tempo de análise ainda não o faz apontar soluções. Mas ele sabe aonde quer chegar. "São Paulo sempre foi vanguarda e precisa voltar a ser vanguarda."

A Curitiba urbanisticamente planejada começou entre 1964 e 1965, com a elaboração de um plano diretor que tinha entre os executores o arquiteto paulista Jorge Wilheim, que foi secretário de Planejamento da capital paulista no governo Marta Suplicy (PT). Wilheim previa o desenvolvimento da cidade ao longo de duas vias estruturais, com canaletas exclusivas para o ônibus. "Foi um plano discutido com a população", atesta o arquiteto Luiz Forte Neto. "É o melhor exemplo de planejamento urbano que existe no Brasil e deverá se estender por algumas gestões ainda."

Mas somente seis anos depois começou a ser posto em prática, quando Lerner, que havia participado das discussões do plano, foi nomeado prefeito.

CARTÃO-POSTAL

Começou com o calçadão da Rua das Flores, ainda hoje um dos cartões-postais mais conhecidos da cidade, continuou na modernização do transporte coletivo e na criação da Cidade Industrial de Curitiba e se estendeu na construção de parques e em programas bem-sucedidos como o da reciclagem de lixo.

No meio disso algumas obras desapareceram logo após serem criadas, como a Rua Ambiental, que reuniria atividades esportivas num mesmo lugar, e outras ganharam destaque apenas arquitetônico, como a Rua 24 Horas. Projetada para ser uma via de serviços, ela praticamente se restringe a bares. "Está muito decadente", resume o escritor e jornalista José Castello, que há cerca de dez anos optou por deixar o Rio e mudou-se para a capital do Paraná. "Curitiba não é uma megalópole e também não é uma cidade pequena", diz. Mas assusta-o o ritmo do crescimento.

De 785 mil habitantes em 1975 pulou para 1,2 milhão em 1985. Hoje tem 1,7 milhão. Muitas dessas pessoas estão na periferia. "Vieram em busca do paraíso, mas no paraíso não tem lugar para todos", diz Castello. É essa também a crítica do urbanista e arquiteto Orlando Busarello. "Onde está a cidade mais humana?"

A existência de cerca de 250 favelas, algumas pequenas com 50 a 100 famílias, mas outras bem maiores, verdadeiras minicidades, são alvo de crítica. "Não se vê ação que comece a mudar isso", critica Bussarello. Para ele, alguns slogans - laboratório de experiências, capital de primeiro mundo - "obscurecem a capacidade de análise crítica".

POLUIÇÃO

Segundo Busarello, dados do Banco Mundial apontam que Curitiba é a quarta cidade brasileira com mais poluição, além de apresentar problemas sérios na conservação dos rios. "Cidade ecológica não é apenas metro quadrado de área verde."

Pelos dados da prefeitura, Curitiba tem 52 metros quadrados de área verde por habitante. A criação de 17 parques, 13 bosques e cerca de 800 praças e jardins é uma das iniciativas que ganham elogios. "Só precisa ter mais políticas de animação desses locais", propõe Busarello.

A questão social é tema recorrente entre analistas da cidade. "É uma cidade bonita, com mais virtudes do que defeitos, mas o problema social é muito grande", reforça o arquiteto Forte Neto, que coordena no governo do Estado projetos de desenvolvimento para as cidades.

Pelos dados do IBGE, 34,29% da população de Curitiba não tem rendimento. Outros 19,83% recebem de um a dois salários mínimos. Entre os que ganham mais de 10 salários estão apenas 4,38% da população.

Lerner não concorda com as críticas. "É bobagem", diz. Segundo ele, muitas das pessoas que estão em favelas foram induzidas a fazer invasões por seus adversários políticos. "Mas mesmo quem está na favela sabe que tem bom transporte coletivo, tem acesso às creches e à escola." A taxa de analfabetismo é de 3,4%.

De acordo com Lerner, Curitiba soube atrair também pessoas com renda alta "para exercer solidariedade, para ajudar a gerar emprego". Mas ele lamenta que tenham sido abandonados alguns programas por ele criados, como o das Vilas de Ofício, em que a pessoa tinha um sobrado, morava na parte de cima e trabalhava embaixo. "Deveria ter tido continuidade", salienta.

Apesar das críticas sobre a qualidade do ar e dos rios, a prefeitura afirma que os programas de reciclagem de lixo, lançados por Lerner, atingem 20% atualmente, enquanto o índice de separação do lixo é de 70%.

TRANSPORTE

Mas é o transporte coletivo que levou Curitiba a ser considerada modelo. Segundo Lerner, 83 cidades do mundo têm o sistema como referência. Houve tentativa de torná-lo confortável, com estações-tubo que propiciam o embarque no mesmo plano das portas, com terminais que permitem integração, com biarticulados que levam mais pessoas, e com as canaletas (faixas exclusivas) para dar mais rapidez, mas não agrada a todos.

O escritor José Castello é um crítico. "Por questão de conforto, tinha de ter feito desde o início metrô. Ou grandes bondes", diz. Segundo Forte Neto, é exatamente a falta de conforto e a existência de poucas linhas tangenciais que estariam levando o curitibano a ainda optar em grande escala pelo carro. Curitiba possui 848 mil veículos, um crescimento de mais de 200% em 20 anos.

"O sistema ainda é bom e tem uma sobrevida, mas tem de pensar em um projeto que inclua outros modais", propõe Busarello. Principalmente porque cada vez mais outro 1,3 milhão de pessoas que vivem na região metropolitana estão dependendo de Curitiba. Mas a atual gestão, de Beto Richa (PSDB), descarta a idéia de novos modais, preferindo os ônibus. Para os carros, pretende-se construir dois anéis viários que desviem o tráfego do centro.

Às vésperas de completar 312 anos, amanhã, Curitiba ainda satisfaz quem a procurou atraído por qualidade de vida. "Curitiba é a capital mais racional do Brasil", diz o analista financeiro Mauro Halfel, que saiu de São Paulo há dois anos e meio. "É uma cidade fácil, com um trânsito ainda muito bom."

Para ele, profissionalmente São Paulo não tem concorrente. Mas perde em tranqüilidade. "Tenho um filho pequeno e ele foi meu incentivo.Quis fugir da loucura", brinca.

O empresário Eduardo Guy de Manoel também veio de São Paulo, há 25 anos. "Curitiba mantém um nível de qualidade de vida razoável", afirma. Mas não sente mais a tranqüilidade de alguns anos atrás. "Quando foi feito o marketing da cidade-modelo veio muita gente trazendo renda, mas atraiu também muito bandido", lamenta.