Título: Portos estranhos
Autor: Dionísio Dias Carneiro
Fonte: O Estado de São Paulo, 04/02/2005, Economia, p. B2

Kermit Roosevelt, filho do presidente Theodore Roosevelt, usou uma bela imagem ao contar que os navios que partiam para destinos desconhecidos eram classificados pelas autoridades portuárias como "licenciados para portos estranhos". A idéia de algo ser adequado para enfrentar o que se desconhece é paradoxal, mas útil. É um requisito desejável tanto para a preparação formal da mão-de-obra num mundo caracterizado pelas inovações tecnológicas quanto para a construção de instituições em economias que se organizam para as aventuras de uma economia de mercado, rumo ao progresso. Davos dá o que pensar. Lula mostrou-se feliz com a acolhida. Isso qualifica o Brasil para uma viagem pelos portos estranhos do capitalismo avançado. Conseguiremos zarpar? Algumas manifestações deste início de ano denunciam a dificuldade da adaptação do pensamento por trás da mudança de discurso. Alguns exemplos apareceram nas discussões sobre a "inevitabilidade" do aumento da carga tributária, na defesa dos impostos de fácil coleta, no crescimento das despesas públicas com a efetivação de funcionários temporários, na vitória do poder discricionário dos ministérios sobre o respeito à autonomia das agências reguladoras, no uso dos grandes projetos de investimento como instrumento de reafirmação do poder federal sobre o destino dos Estados e municípios, na revoltante associação entre assassinatos e o agribusiness, na absurda tentativa de reviver os elementos de controle sobre a informação contida nas infelizes declarações de Lula sobre as pesquisas do IBGE, e assim por diante. Tais manifestações motivam a institucionalização dos absurdos que enrijecem o Estado no rumo de portos conhecidos. Um exemplo é a portaria sobre os destinos dos dados do IBGE, que mostra que não foram superadas as motivações do projeto da Ancinav. Por detrás da tentativa de mostrar um compromisso com uma economia mais flexível, a antiga militância continua a tentar construir o Estado autoritário.

Superar o voluntarismo típico dos governos autoritários, sempre a exibir a bandeira das preocupações "sociais" como desculpa para o dirigismo nos investimentos e para o aumento permanente das despesas públicas, é um desafio para a longa curva que o governo Lula e seu partido estão promovendo para mudar o rumo de seu discurso. Foi preciso muita habilidade política para transformar o discurso de campanha, que atrasou a recuperação do crescimento brasileiro, no discurso em Davos, onde reafirmou, com maior confiança, em linhas essenciais, que a seriedade da mudança liderada pelo ministro Palocci não é apenas um truque para atrair incautos. Mas é preciso mais do que habilidade política para enfrentar os obstáculos intramuros, que, nos próximos dois anos, provocarão perdas de militantes radicais frustrados, ainda que sinceros. Os gestos para conter este êxodo lembram os espasmos do dr. Strangelove, caracterização grotesca do ex-nazista imortalizado por Peter Sellers no filme de mesmo nome. O estranho amor pela bomba, em nome da paz, encontra um paralelo no momento em que o Brasil tem todas as condições para decolar.

Em nome do social, enrijece-se a estrutura tributária, centralizam-se decisões de investir nas mãos do governo e aumentam-se as despesas públicas. Esta postura dificulta o preparo do grande navio brasileiro para as incertezas dos portos desconhecidos do futuro. E fomenta conluios entre investidores privados e burocratas ambiciosos. Uma coalizão que faz vicejar o que há de pior nas sociedades capitalistas modernas: a disputa pelas rendas de monopólio travestida de busca do lucro pela inovação. Há cem anos, o presidente Ted Roosevelt, um homem do establishment, esforçou-se para tornar mais clara a distinção entre essas duas fontes de renda nas instituições do capitalismo americano.