Título: Entreatos: Porto Alegre, Davos e 2006
Autor: Pedro S. Malan
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/02/2005, Espaço Aberto, p. A2

O que significa "transformar o mundo" ou uma sociedade? Norberto Bobbio responde: "Rigorosamente nada", pelo menos enquanto não se diga, com clareza, quais são os objetivos desta transformação e com que meios se pode alcançá-la.

Falar e escrever sobre objetivos é sempre mais fácil, até porque, para muitos, basta anunciar o que não se quer (miséria, pobreza, exploração, violência, injustiça, corrupção e assim por diante). Como se a definição pela negativa permitisse, por si só, a visão de um admirável mundo novo, apresentada como objetivo a realizar. Os profissionais da política e da propaganda política sabem da força retórica desta distinção entre o mundo tal como realmente existente e o mundo tal como idealizada possibilidade: o primeiro é sempre pior que o segundo.

Acabamos de assistir às midiáticas reuniões de Porto Alegre (Fórum Social Mundial) e Davos (Fórum Econômico Mundial), ambas disputando amplo espaço nos meios de comunicação dos países em desenvolvimento. Ambas gerando expectativas de que dali surgissem "propostas concretas", se não para a criação de um mundo novo, ao menos para o combate à pobreza, à injustiça e à desigualdade. A reunião do G-7 no fim de semana passado, em Londres, teve como um dos seus temas a expressão "make poverty history", ou seja, fazer a pobreza virar coisa do passado. Parece ser possível, gradualmente, avançar além da mera expressão de insatisfações com o fato de que há, no mundo de hoje, situações que ou não se justificam economicamente ou são ética e moralmente impossíveis de conciliar com o nível de civilização que acreditamos haver alcançado.

Em 1995, por exemplo, os governos representados em conferência das Nações Unidas em Copenhague estabeleceram alguns objetivos a serem atingidos em 2015, tomando como base a situação existente em 1990. Dentre eles, o objetivo principal do que são hoje as Metas do Milênio, adotadas formalmente por 189 países durante a Assembléia-Geral da ONU de setembro de 2000: reduzir à metade, entre 1990 e 2015, a parcela da população vivendo em condições de extrema pobreza. O Banco Mundial mostrou que, em 1990, havia 1,219 bilhão de pessoas vivendo com menos de US$ 1 por dia (das quais 49 milhões, ou cerca de 4% do total, vivendo na América Latina e no Caribe, representando 11,3% da população total desta região). Mais de 90% dos extremamente pobres estavam localizados na África e na Ásia.

Menciono esses números, conhecidos desde meados dos anos 90, porque quero registrar uma extraordinária observação do presidente Lula (então candidato, prestes a ganhar a eleição de 2002) captada pela eficiente e discreta câmera de João Moreira Salles no excelente documentário intitulado Entreatos. A certa altura, diz o candidato (em conversa informal com correligionários) que não acreditava, e se perguntava como alguém podia acreditar que o Brasil tivesse 53 milhões de miseráveis passando fome ou milhões e milhões de menores abandonados pelas ruas, como lhe haviam feito dizer em discurso. A correta intuição do presidente (então candidato) não se pôde sobrepor à força do animado espírito combativo de seus militantes e propagandistas políticos, interessados, à época, na apresentação do mais desolador quadro possível sobre a reconhecidamente insatisfatória realidade social do País.

Há duas coisas que nós, brasileiros, deveríamos ter presentes. Primeiro, que o resto do mundo, desenvolvido e em desenvolvimento, quando fala e tenta mobilizar-se contra a miséria e a pobreza, está pensando fundamentalmente na África e em algumas partes da Ásia, certamente não no Brasil e na maior parte da América Latina e do Caribe. Na visão do resto do mundo, proporções "africanas" de pobreza, em escala nacional, na região, só as teríamos no Haiti.

A segunda observação, derivada do comentário do presidente Lula, tem que ver com os dois milenares ensinamentos do Templo de Delfos: "conhece a ti mesmo" e "nada em excesso". Por uma razão simples: exagerar propositadamente a magnitude de um problema social significa tornar não mais fácil, porém mais difícil a mobilização de vontades e ações para superá-lo. Faz uma grande diferença quando os cidadãos de uma comunidade sentem que as suas ações podem ter algum efeito prático em minorar um problema que identificam. Esta era a beleza da concepção da Comunidade Solidária.

Vejamos o caso dos seis grandes objetivos sociais do Milênio. O principal, o Brasil tem condições de realizar, isto é, de ter, em 2015, reduzido pelo menos à metade a parcela de sua população que vivia em extrema pobreza em 1990. Existem outros cinco grandes objetivos, todos seguramente ao nosso alcance, alguns para muito antes de 2015: universalizar o acesso à educação fundamental; promover a igualdade dos gêneros no que respeita ao acesso à educação e ao mundo do trabalho; reduzir em dois terços, entre 1990 e 2015, a taxa de mortalidade de crianças abaixo de 5 anos; reduzir em três quartos a taxa de mortalidade materna entre 1990 e 2015; alcançar metas no combate à aids (no que o Brasil já é hoje referência internacional).

O Brasil estaria fazendo muito por si e por sua influência no mundo se dissesse, em alto e bom som, que, pelo menos em seu território, pretende ter alcançado os objetivos sociais do Milênio em 2015 ou antes. E fazer o monitoramento anual de forma sistemática e transparente. Isso envolveria divulgar amplamente os números pelo menos desde o ano-base de 1990, saber como evoluímos desde então até o presente e avaliar se as políticas e os programas existentes nos permitem alcançar os objetivos no prazo acordado. Para este olhar adiante seria talvez desejável reduzir um pouco a sistemática atribuição de culpas ao passado para justificar problemas operacionais do presente e incertezas sobre progressos futuros.

Em resumo, acho que poderíamos avançar mais em termos de qualidade do debate público no Brasil se reconhecêssemos que são fundamentalmente três as características essenciais de uma sociedade moderna: liberdades individuais, justiça social e eficiência (pública e privada). E que nos puséssemos a discutir objetivamente, em cada área específica, se estamos utilizando os meios mais eficazes para avançar na consolidação destes objetivos maiores. Em vez de nos perdermos em firulas retóricas, rotulagens destituídas de significado e discursos que nem sequer tomam conhecimento das informações disponíveis sobre os avanços que já realizamos, sobre os compromissos que já assumimos - e sobre o muito que sempre haverá por fazer nos entreatos da vida brasileira. Antes e depois de 2006.