Título: Diplomacia em mão dupla
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/02/2005, Espaço Aberto, p. A2

Num dia, o presidente, ao saudar novos diplomatas no Itamaraty, referindo-se à comunidade de países de língua portuguesa, insere a Índia no continente africano; noutro, recebendo o embaixador da Noruega, anuncia o desejo de "vê-lo novamente" em jantar que o chanceler Celso Amorim estaria organizando para embaixadores da União Européia (UE). Tanto na fala em que muda a geografia quanto no discurso em que insere o país nórdico num bloco a que não pertence, Lula demonstrou desconhecimento de geopolítica. Para um ex-metalúrgico que confessa ter feito apenas o curso do Senai, o erro é compreensível. Para o presidente da República, porém, gafes contínuas causam desconforto e até constrangimento, quando não risos, na platéia, como nos episódios em que falou da viagem (inexistente) de Napoleão à China, confundiu libaneses com líbios ou disse ao primeiro-ministro Tony Blair, na Inglaterra, que estava prevendo para muito breve sua aposentadoria.

O desembaraço e a conseqüente série de imprecisões geográficas e históricas que balizam os discursos de Lula sobre "tudo e todos" impressionam, sobretudo quando o campo escolhido é o das relações exteriores (objeto de freqüentes análises nesta página pelo ex-ministro Celso Lafer), bem mais arenoso que campos de futebol, que se prestam às suas metáforas. Acontece que a política externa é um dos pontos fortes do governo. A diplomacia brasileira arremete com força contra barreiras alfandegárias de países ricos, abrindo margem para mudanças na esfera do comércio internacional. Além disso, começa a construir pontes de integração com a Índia e a China. Quer ter um diálogo mais igual com o Hemisfério Norte. No sul do nosso hemisfério, esforça-se para reforçar o Mercosul, incluindo Peru, Colômbia e Venezuela, por exemplo. Perante o bloco dos mais ricos levanta a bandeira da erradicação da fome, flagelo que maltrata 15% da população mundial.

Esse é, por assim dizer, o escudo que o Brasil usa para não ser abatido pela guerra da globalização e criar diferencial de imagem. Ao lado profissional da diplomacia, porém, se contrapõe uma banda amadora, que esmaece feitos da política externa. Nela apitam políticos medíocres derrotados, militantes de partidos de esquerda deslumbrados e figuras carimbadas do exotismo. Em Cuba, o ex-padre Tilden Santiago é um esfuziante embaixador que não se cansa de dançar salsa em festas quase diárias, segundo a Veja. Outro ícone da diplomacia capenga do Itamaraty, habitada por "amigos do rei", é o ex-presidente Itamar Franco, de quem nunca se soube o que fez em seus estágios como embaixador e se espera a definição do que vai fazer. Candidato a senador ou a nova embaixada? Em Portugal, onde atualmente está o ex-deputado Paes de Andrade, há sempre um lugar reservado para quem não fala inglês.

Em suma, o exercício da diplomacia ativa do Itamaraty se desenvolve em paralelo à "diplomacia" passiva, aquela competentemente trabalhada por profissionais de carreira, esta usada por penetras. A distribuição de embaixadas entre políticos e amigos, vale dizer, não é privilégio brasileiro. A politicagem se faz presente até nos EUA, onde amigos do presidente acabam sendo brindados com altos postos. Alguns brilharam na diplomacia, como Henry Kissinger e Foster Dulles, outros foram opacos, como Joseph Kennedy, pai do presidente JFK e amigo de Roosevelt, que, apesar de ter sido traficante de bebidas, foi embaixador em Londres. Entre os nossos, aponta-se Assis Chateaubriand, que Juscelino nomeou embaixador em Londres como forma de retribuir o apoio dos Diários Associados. Conclusão inevitável: até na faixa dos amadores a qualidade tem caído muito.

A diplomacia amadorística é plena de sentimentalismo. A afinidade de alguns dos nossos expoentes políticos com Cuba e Venezuela abre os combalidos cofres nacionais, via BNDES, para ajuda material àqueles países. A propósito do sentimentalismo solidário, aliás, o Brasil exibe uma história de eventos funestos. Nos tempos de Geisel, corruptas ditaduras marxistas africanas receberam uma bolada de financiamentos. Acabaram perdoadas. No Oriente Médio, o Brasil ajudou Saddam Hussein (com armamentos da Engesa e Avibrás, por exemplo), que, em retribuição, prometeu nos vender petróleo com descontos. As empresas quebraram. E ficamos a ver navios. O governo Figueiredo emprestou milhões de dólares à Polônia comunista. Foi calote certo. Agora, o Brasil abre as asas para Líbia, Síria e outros eixos ditos "revolucionários". Se isso faz parte da nova realpolitik, temos de convir que a diplomacia brasileira se assemelha a um cabo-de-guerra, puxado, de um lado, pela racionalidade da cabeça e, de outro, pelo saudosismo do velho coração de "revolucionários" aposentados.

Vejam-se os casos mais recentes envolvendo o Itamaraty: a exclusão de inglês das provas eliminatórias e o esforço do governo para convalidar, no Brasil, o título de médico que estudantes escolhidos pelo PT trazem de Cuba. Trata-se, como se sabe, de um privilégio inadmissível, na medida em que o ensino cubano forma um generalista básico, formação incompatível com as exigências de nossas universidades. A roda das banalizações e do nivelamento por baixo se fecha por aqui. Mas é o suficiente para explicar a pouca importância que Lula confere ao conceito de excelência que, por décadas, ilustrou a fornada de embaixadores da Casa do Barão de Rio Branco. Agora tudo fica mais claro: o desconhecimento do presidente Lula sobre geopolítica não causa estranheza aos itamaratecas que dão o tom maior, para quem a gafe gerada pela ignorância vale mais que o aplauso conseguido com o saber. Para entender o pensamento: Costa e Silva, encontrando-se com o presidente Nixon, ficou calado, em grande silêncio, depois de um rápido "how do you do?". O assessor indagou se estava se sentindo bem. O velho presidente, sarcástico, respondeu: "Claro. Estou calado apenas porque meu inglês acabou."