Título: O PT e a ultra-esquerda
Autor: Jarbas Passarinho
Fonte: O Estado de São Paulo, 22/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Corajosa e sensata, ao mesmo tempo, foi a declaração pública do presidente do Partido dos Trabalhadores (PT), um político cuja trajetória se inicia com a juventude impregnada da crença revolucionária como única alternativa para a concretização do ideal igualitário, inflete para a solução hegemônica de Gramsci e, realista, mostra clara identidade com o socialismo democrático, de Norberto Bobbio. É a tese da ala que defende no PT. Ou seja, iniciou-se com a busca, pela via armada, da utopia marxista e progressivamente evoluiu e se engajou na convicção de que só a democracia, guardiã da liberdade, merece ser o seu fanal político. Fica distante da aventura revolucionária como do imobilismo conservador, no que se identifica com os que, repudiando a luta armada - a que se dedicou ainda muito jovem, na guerrilha do PC do B -, se batem pela reforma da sociedade e pela eliminação de suas injustiças sociais. Daí o papel que desempenha na presidência do PT e a declaração que lhe ouvi na TV, há poucos dias, a propósito do manifesto da chamada esquerda desse mesmo partido, ardorosamente crítica da política econômica do governo e das alianças com partidos tidos como de direita. Disse Genoino: "Fazemos alianças porque não somos maioria no Congresso e na Nação." Enquanto não tivermos um presidente da República eleito pelo seu próprio partido - o que tem sido a tradição política brasileira - e só com os votos que esse partido colher nas urnas, inevitável será, e tem sido, governar cedendo à necessidade de alianças. Em 2002 o candidato Lula já havia abandonado a intransigência que o fez rejeitar publicamente o apoio de Ulysses Guimarães em 1989. Disse ele: "Aliança política não deve ser uma questão de princípio. Você faz de acordo com os interesses do povo e do partido. Se não der certo, a gente desfaz."

O PT, não é inoportuno enfatizar que herdou de Lenin o "centralismo democrático", que ao bolchevique permitiu fazer do Partido Comunista um partido monolítico, jamais antes existente. Assim foi o PT, mas só até chegar com Lula ao poder. A partir de então, as dissidências, até então admitidas, mas debatidas interna corporis, explodiram. Os primeiros detonadores, a senadora Heloísa Helena e os três deputados que a acompanharam, foram expulsos do PT por indisciplina, ou melhor, por violarem o "centralismo democrático", que submete ferreamente a massa à decisão da liderança. As eleições municipais então próximas contiveram, pela prudência, a fim de não ficarem sem legenda para disputá-las, outros dissidentes, que seriam supostamente 30% da bancada parlamentar petista. Logo, todavia, se seguiriam divergências públicas, opiniões mais ou menos abstratas, mas o tempo de incubação dos fatos concretos de desafio se esgotou.

O deputado Virgílio Guimarães, na eleição da presidência da Câmara dos Deputados, candidato rejeitado pela direção partidária, que apoiou o preferido pelo presidente da República, desafiou-a abertamente. Insistiu na candidatura renegada. Cometeu a impensável quebra disciplinar do "centralismo democrático". A punição será inevitável. A isso se seguiu a publicação do manifesto da esquerda do PT, o que obrigou o fundador desse partido a não comparecer, no Recife, às comemorações dos 25 anos de fundação do PT. Genoino permite-se fazer crer que Lula não foi ao Recife não por temer manifestações críticas, alimentadas pela quase certa demissão do ministro da Saúde, Humberto Costa, pernambucano, mas por falta de recursos financeiros. Ridículo chega a ser, e é pena que o combativo Genoino se preste a divulgar uma patranha dessa natureza. Ao PT, por sinal estranhamente fundado no elitista Colégio Sion, de São Paulo, nunca faltou dinheiro e nem precisaria - como não precisou, segundo o ministro Luiz Gushiken - de ajuda das Farc.

Que servidores públicos, antes redutos calorosos do PT, engrossassem o grupo que vaiou Lula no Fórum Mundial Social recentemente, em Porto Alegre, a direção do Partido dos Trabalhadores ainda podia desprezar, até porque as vaias foram neutralizadas pela maioria mobilizada pelo partido, o que silenciou os protestos. Nunca, porém, os que dividem o partido e o ameaçam de um cisma, com suas críticas recorrentes à política econômica do governo e às suas alianças para garantir a base de sua sustentação no Congresso. Estes são intoleráveis, porque irrealistas que querem ressuscitar as teses do partido quando podia passar sem as alianças. Cometem o pecado histórico de desconhecer a experiência da esquerda mundial, a distância entre os programas de partido de oposição e de governo, entre cultura de partido e cultura de governo. Assim se deu com François Mitterrand, como se dera com Léon Blum, socialistas, na tática de alcançar os objetivos socialistas por etapas.

Certo está Genoino: se fosse o mesmo Lula de 1989, na quarta tentativa a presidente da República continuaria a ser o vice-campeão dos segundos turnos, pois o PT não é maioria absoluta no Congresso nem no País. A ultra-esquerda não consegue ver isso. Ainda bem para nós, que estamos do outro lado...