Título: Dia de fúria contra aumento para politicos a 45 quilometros de Brasília
Autor: Vasconcelo Quadros Enviado especial CIDADE O
Fonte: O Estado de São Paulo, 27/03/2005, Nacional, p. A10
O 22 de março de 2005 vai ficar na história de Cidade Ocidental, um pobre município goiano de 50 mil habitantes, a 45 quilômetros do Palácio do Planalto e a 220 de Goiânia. Foi esse o grande dia da reação contra os abusos dos políticos, o grito do chamado Entorno do Distrito Federal contra privilegiados que debocham da pobreza que vive ao seu lado. Naquela noite, a população, revoltada com o hábito - já transformado em rotina pelos políticos brasileiros - de legislar em causa própria, reagiu com violência a uma decisão da Câmara Municipal e por pouco não promoveu uma pequena versão brasileira da "Noite de São Bartolomeu" - o célebre massacre dos protestantes pelos católicos, na França, em 24 de agosto de 1572. Não fosse a dura ação policial, os revoltosos teriam atacado o presidente da Câmara, o vereador Darilho Souto (PSDB), e outros quatro "bagrinhos".
A razão da fúria popular foi a aprovação, por cinco votos a quatro, de um decreto-legislativo criando o "14.º e 15.º salários" - escritos assim mesmo no texto - para o prefeito Plínio Araújo (PSDB), a vice-prefeita Sônia Melo e mais seis secretários municipais. Assim que o presidente da Casa deu o voto de Minerva (estava 4 a 4) e anunciou o resultado, a revolta tomou conta de cerca de 200 manifestantes que, alheios à chuva forte e ao frio, ocupavam a área externa da Câmara, transformada em praça de guerra.
Souto sentiu bem de perto a ira dos eleitores e só escapou porque o pelotão de choque da Polícia Militar goiana, com 60 homens armados de cassetetes, bombas de efeito moral e sprays com gás de mostarda, investiu contra os manifestantes. Os manifestantes deram pauladas, jogaram pedras e só não viraram o carro porque a polícia agiu com violência. "Fiquei muito aflito e, se não fosse a polícia, no mínimo teria ido parar no hospital", conta o presidente da Câmara. Ele e os outros quatro que aprovaram o projeto saíram por um corredor polonês formado pela polícia e só dispensaram a ajuda quando a multidão já se havia dispersado.
'VALEU A PENA'
Cinco manifestantes saíram feridos do confronto - entre eles uma servidora da Câmara dos Deputados, Eva Gomes Tavares, mulher de um dirigente do PT local, Humberto Jorge. Atingida por um escudo, ela caiu, bateu com a cabeça no meio fio e, em convulsão, foi levada ao hospital. "Acho que valeu a pena. O povo vai acordar ainda para esse tipo de absurdo", disse Eva, já recuperada da violência.
"O foco do que vinha acontecendo na Câmara, com a eleição de Severino (Cavalcanti), voltou-se para cá. Não podendo ser ouvido pelo Congresso, o povo decidiu dar o grito aqui em Ocidental", avalia o frade franciscano Jorge Luiz Soares, pároco da cidade. Frei Jorge marcou presença diante da Câmara, na noite do confronto, para demonstrar que a Igreja, que antes era apontada como aliada do prefeito, desta vez se posicionava contra "um privilégio imoral", ainda que respaldado pela lei.
Cidade Ocidental, uma cidade-dormitório com base econômica fragilíssima, baseada no pequeno comércio e na renda de moradores que trabalham em Brasília, está entre as 14 cidades do chamado Entorno do Distrito Federal, faixa em que vivem 2 milhões de pessoas. É uma síntese dos problemas sociais não resolvidos: violência, desemprego, falta de infra-estrutura, descaso administrativo e uma insaciável voracidade do poder público pelo dinheiro dos tributos.
O DRAMA DO IPTU
"Se a Prefeitura insistir em cobrar esse valor no IPTU, vou ter de fechar. O pior de tudo é que esse dinheiro ajudaria a pagar os novos salários aprovados pelos vereadores", diz, revoltado, o comerciante Alceu de Souza Oliveira, dono de uma pequena loja de confecções no centro da cidade. Para não deixar dúvidas, ele exibe dois extratos de cobrança desse imposto, para mostrar a diferença de valores. No ano passado pagou R$ 64,40. Este ano, com o "generoso" desconto de 50% sobre o total da fatura, a cobrança chega a inexplicáveis R$ 899,62.
O IPTU é apenas um dos itens que transformaram a votação dos salários na gota d'água que levou à revolta popular. A estrada de acesso à cidade está em condições precárias, faltam remédios e funcionários no hospital municipal, as condições das escolas são precárias e o prefeito Plínio Araújo, que no início do segundo mandado prometia transformar Ocidental na "Princesinha do Entorno", demitiu e cortou gratificações (vale transporte e auxílio alimentação) até dos garis.
"Se o pretexto era cortar gastos porque ele aceitou mais dois salários? É um absurdo! Fui à Câmara para olhar na cara dos vereadores que iriam votar", afirma, sem se intimidar, a agente escolar municipal Cristiane Alves, que ganha R$ 260 e conta, com pesar, que perdeu os R$ 30 que recebia como auxílio transporte para se deslocar às áreas rurais.
O placar de votação na Câmara Municipal foi de cinco a quatro, um resultado apertado, num ambiente em que os adversários se dividem em duas alas - uma em que PT e PFL estão juntos, e outra, representada pelo PSDB, aliado ao PPS, PP e PMDB. A repercussão do episódio produziu revelações e reações curiosas. "Eu nunca pedi os salários. Foi uma iniciativa do Legislativo, ninguém me consultou e não quero esse dinheiro. Se vier vou devolver", disse o prefeito Araújo.
A grita foi geral. Os nove vereadores foram à Justiça. Mas nada como uma reação popular para fazer o político mudar de comportamento. "É verdade. Se tiver que ser sacrificado não posso reclamar. Eu achava que, como vereador, tinha direito e que o dinheiro era necessário porque a Câmara não tem infra-estrutura para se exercer o mandato. Mas fiz uma reflexão e achei que estava errado", reconhece o vereador Marconi Moura de Lima, líder do PT na Câmara. Ele, seu colega de bancada Afonso Eduardo e o pefelista Clauber Molé pediram a retirada dos nomes da procuração e não querem mais os salários que reivindicavam.
Para sacramentar a posição entraram com uma representação junto ao TCM solicitando que o caso seja julgado definitivamente pelo Tribunal de Justiça de Goiás para pôr um fim à polêmica. A decisão será emblemática: se os vereadores conseguirem confirmar o privilégio, o mesmo decreto-legislativo estende o benefício dos dois salários para o prefeito, a vice-prefeita e os secretários municipais.