Título: Até para o dr. Palocci deve haver limites
Autor: José Nêumanne
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

Num lance do acaso, a morte do prefeito de Santo André (e, o que sempre se costuma omitir, coordenador do programa de governo do candidato do PT à Presidência da República em 2002) Celso Daniel provocou uma guinada de 180 graus na campanha vitoriosa e nos rumos do primeiro governo soi-disant socialista no Brasil. O lugar do prócer executado foi assumido por outro prefeito petista, o de Ribeirão Preto, Antônio Palocci, que, entre outros feitos notáveis em sua gestão, havia capitaneado um surpreendente e bem-sucedido processo de privatizações. Palocci foi o principal artífice da virada na retórica econômica petista, levando o candidato e o partido a adotarem uma linha pragmática e realista de continuação (e, em muitos casos, até de radicalização) da política de rigor fiscal e contábil, enquadrada no perfil globalizado liderado pelo FMI e pelo Banco Mundial, da gestão tucana a que se opunha, de Pedro Malan e Fernando Henrique.

Após a posse, com Palocci no Ministério da Fazenda e Henrique Meirelles, por este escolhido, no Banco Central, Lula cumpriu o que dissera na campanha, deixando de lado o discurso do ¿fora FMI¿ e da ruptura com a ordem econômica internacional, decepcionando a esquerda do partido e se tornando uma espécie de enfant gaté dos barões das finanças internacionais.

O novo e surpreendente poder de Palocci, desafiando a supremacia do chefe da Casa Civil, José Dirceu, que reinou sozinho ao lado de Lula ao longo da trajetória das três derrotas eleitorais até a rampa do poder, evitou o clima de caos que era previsto para sua gestão, acalmando o mercado em polvorosa com sua vitória anunciada, aqui e no exterior.

A bonança (ou melhor, a tempestade que, afinal, não veio) e a boa conjuntura internacional produziram resultados favoráveis na economia a ponto de, passada a primeira metade do governo, o chefe deste continuar nas boas graças da opinião pública nacional e em plena lua-de-mel com a internacional.

Mas a lua-de-mel com a sociedade brasileira acabou por culpa da inépcia do restante da equipe mastodôntica e ineficiente com que Lula povoou a Esplanada dos Ministérios para satisfazer seu generoso coração de amigo, consolar companheiros derrotados nas urnas e apaziguar os ânimos de quem se sentisse por ele desprestigiado.

Era natural que seu braço direito (no caso, seria melhor dizer esquerdo) José Dirceu se magoasse e destilasse o fel dessa mágoa pelo noticiário político, principalmente após ter descoberto que, a cada lágrima derramada, ganha como consolação um conselhinho a mais para presidir.

Posto a falar sozinho numa reforma ministerial que prometia ser trágica, mas terminou comicamente abortada pela pouca disposição do presidente para decidir e, sobretudo, contrariar interesses, o chefe da Casa Civil tem redobrado o vigor de seu pranto e o ruído do ranger de seus dentes nos últimos dias. O aborto da reforma ¿ precedido pela fragorosa derrota do candidato oficial (péssimo, por sinal), Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), para Severino Cavalcanti (PP-PE) na presidência da Câmara dos Deputados e sucedido pelo vergonhoso recuo do governo na votação da Medida Provisória (MP) n.° 232 ¿ tem aguçado a cizânia nas hostes petistas, em vez de promover a união forçada pela primeira ameaça concreta ao projeto de permanência no poder que os companheiros acalentam, sob o cobertor em que mutuamente se recriminam.

O certo é que a ilusão de ser o sanitarista Palocci uma ilha de excelência e um porto seguro no mar de procelas do PT começou a esboroar recentemente.

Há duas semanas, ele compareceu pessoalmente à Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado da República para pedir ¿serenidade¿ aos membros desta no julgamento de sua companheira petista Marta Suplicy.

Na verdade, ele queria mesmo, e não pôde, era pedir clemência para a ex-prefeita de São Paulo, cuja pele já havia tentado salvar, eximindo-a de uma traquinagem contra a Lei de Responsabilidade Fiscal com uma MP com efeito retroativo ¿ um desempenho muito cínico e pouco cívico, de fazer até José Dirceu corar.

Em seguida, após ver, impotente, naufragar no Congresso a nau capitaneada de maneira desastrada por seu subordinado Jorge Rachid, teve o desplante de dizer que o governo ganharia a votação da MP n.° 232 ¿ cujo teor é o melhor exemplo de arrogância e estupidez que um burocrata pode dar ¿, por dispor de maioria, da qual, generoso, abriu mão.

Como nem os patos nos espelhos d¿água da Esplanada dos Ministérios ignoravam que o mostrengo seria massacrado no plenário em que fosse votado, pareceu que Sua Excelência não tem lá em grande conta o bestunto médio da cidadania, à qual ele deveria tratar de servir, mais que simplesmente planejar escorchar.

Convém advertir que o triunfo da mobilização da sociedade, que levou o Parlamento a contrariar o governo, uma raridade numa história em que a obediência e o servilismo daquele são mais freqüentes, foi acachapante, mas provisório.

Com a volúpia que a patota do PT tem exibido de gastar, empregando companheiros, comprando aviões, fazendo despesas em cartões de crédito, etc., não tardará muito até que Rachid seja chamado novamente a prestar seus serviços, produzindo outro mostrengo similar. Desta vez, ficou pelo menos a lição de que Palocci é um quadro diferenciado do PT, mas talvez não seja tão diferente assim dos companheiros dele.

Pode até abandonar um discurso antigo para garantir a vitória eleitoral de seu candidato. Mas, da mesma forma, pode tentar salvar a pele de uma correligionária, alegando que ela violou a lei, mas foi ¿por uma boa causa¿.

O que, evidentemente, é um despautério para qualquer cidadão que se pretenda um devoto e leal servidor da democracia