Título: União Complicada
Autor: Mario César Flores
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

Uma união saudável deve ser pautada mais por perspectivas e interesses concretos do que por visões abstratas. Assim vem sendo com a União Européia. Na economia ela vai bem: apoiada inicialmente no Plano Marshall, útil à contenção do comunismo, seus custos posteriores foram cobertos por países europeus que voltaram a ser ricos (a incorporação do Leste Europeu já preocupa) e o destaque econômico alemão é aceito pela França, cujos interesses rurais a Alemanha não afeta. Já a união política não vai tão bem, haja vista a dificuldade na adoção de posições comuns. A convergência que existiu sob a ameaça soviética é hoje comprometida por visões nacionais subjetivas e pelo sentimento de direito ao destaque, vigente na França, apoiado no orgulho nacional e no status de potência membro permanente do Conselho de Segurança da ONU.

Vejamos a América do Sul. A evolução de uma vaga comunidade de nações sul-americanas supostamente útil ao confronto econômico-financeiro global para uma união com constrições e obrigações concretas é complicada e precisa proporcionar vantagens coerentes com o compromisso.

Ademais, uma união dessa natureza não é gratuita, como mostra o caso europeu. Pode o Brasil bancar compensações de assimetrias, podem Brasil e Argentina bancar a integração sul-americana? Os setores afetados por artifícios compensatórios, brasileiros e argentinos, teriam a convicção política que os fizesse aceitar a carga do processo, com democracia sujeita aos humores eleitorais em que eles são influentes?

Aos tropeços da união das economias brasileira e argentina, cujos nacional-desenvolvimentismos do século 20 visaram à autarquia alheia à complementaridade articulada, há que somar o problema das perspectivas nacionais distintas.

O Brasil vê no Mercosul uma conotação de projeto político de inserção no mundo e de revisão da ¿geografia comercial¿ global, sem descartar sua validade no comércio regional.

Já Argentina vê o nosso mercado admitindo o ideário brasileiro com a cautela inerente ao seu atavismo cultural, que reluta em aceitar o destaque do Brasil. Atenuadas as razões que nos põem na mesma trincheira global e tendo a Argentina consolidado sua recuperação, certa se não recair no populismo redentorista, é razoável imaginar que ela possa voltar a prestigiar a associação com o mundo rico, como no seu feliz pré-1930 ¿ ainda que o comércio regional não mais será irrelevante, como era então. A discreta manifestação argentina de cuidado com o armamentismo venezuelano, consoante com a posição norte-americana e na contramão do apoio brasileiro a Chávez, é um sintoma do que pode vir a acontecer.

Na euforia da conversibilidade paritária dos 1990, a Argentina viveu um interlúdio dessa natureza: sua política cortejava os EUA e o presidente Clinton chegou classificar a Argentina como um aliado extra-Otan.

As barreiras a produtos brasileiros prefaciam o enredo possível, também vislumbrável neste exemplo político: o princípio aventado pela Argentina da rotatividade no Conselho de Segurança; Argentina e Paquistão assinaram recentemente uma declaração que fragiliza a pretensão do Brasil e da Índia. Vale citar a respeito um fato emblemático (conforme Brasil-Argentina, um Estudo de História Comparada, de Boris Fausto e Fernando Devoto): há cem anos, quando o Vaticano nomeou um cardeal brasileiro, a imprensa argentina deixou claro que não se tratava de cardinalato sul-americano... E está a Argentina propensa a apoiar o candidato brasileiro a secretário-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), que concorre com um uruguaio e um europeu?

Cabe aqui breve digressão sobre aspecto raramente explicitado, embora atuante na saúde da união econômica e, principalmente, da política: a influência cultural. Se bem que o problema não seja grave, pois inexistem incompatibilidades radicais e a matriz ibero-cristã é comum ao Brasil e à Argentina, alguns matizes de ressaibos de antagonismos do passado e do nacionalismo econômico se retroalimentam e complicam a união.

A integração econômica ajuda a evolução cultural positiva, mas o inverso também é verdadeiro: atritos econômicos podem revigorar as hoje já bem menos atuantes idiossincrasias culturais. Nos últimos 20 anos houve avanço na superação do problema, ainda insuficiente. As medidas adequadas se inserem em vários campos de intercâmbio cultural e incluem o turismo: a ¿invasão¿ argentina de verão, nas praias brasileiras, tem sido útil à compatibilização psicossocial.

Em suma, a união regional continuará problemática sem a redução das mazelas econômicas e culturais. O Mercosul e a comunidade de nações sul-americanas devidamente formalizada poderão, de fato, ter peso na arquitetura internacional, uma vez melhoradas suas bases econômica e cultural, potencialmente estímulos ou barreiras, dependendo da sedução ou relutância que delas decorram. Com a evolução positiva dessas bases a assimilação da natural posição brasileira no sistema acabará por acontecer, desde que sem ufanismo e que se reflita em vantagens para todos, mas sem ela continuaremos a cortejar o insucesso.

De qualquer forma, sempre restará uma área inconciliável: a rivalidade no futebol, refletida nas palavras de um presidente argentino: ¿Contra o Brasil vale gol com a mão.¿

Mas no futebol a Argentina não pode alegar assimetria legitimadora de salvaguardas compensatórias como o ¿gol com a mão¿ e, se as dificuldades passarem a se manifestar apenas no futebol, ótimo: em nível global seus reflexos só serão sensíveis de quatro em quatro anos, nas Copas do Mundo...