Título: Morre nos EUA o escritor Saul Bellow
Autor: Antonio Gonçalves Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/04/2005, Vida$, p. A16

Prêmio Nobel de Literatura em 1976, o autor de Ravelstein e O Legado de Humboldt, entre outros, estava com 89 anos O maior escritor da América, como a mídia costumava se referir a Saul Bellow, morreu ontem, aos 89 anos, em sua casa de Brookline, no estado de Massachusetts, Estados Unidos, após longa enfermidade. Bellow comeu peixe contaminado, em 1995. Ficou inconsciente por cinco semanas com seqüelas no sistema nervoso. Premiado com o Nobel de literatura em 1976, Bellow tem vários livros publicados no Brasil, entre eles o último, Ravelstein (2001, Rocco), que, de certo modo, resume a galeria de personagens neuróticos e desiludidos dessa sua longa carreira com outros deprimidos introspectivos, descritos por vezes em tom picaresco. Deles, o mais conhecido talvez seja o protagonista de Herzog (1964). Enquanto Woody Allen fez humor com os mesmos tipos, Bellow prefere jogá-los num precipício conradiano. Bellow interpretou a si mesmo em Zelig (1983), o filme de Allen que conta a vida de um homem que troca de personalidade como quem troca de roupa. É uma justa homenagem a Bellow, que fez de seus amigos modelos para a construção de seu fragmentado alter ego literário. Ravelstein, por exemplo, era o seu amigo e mentor Allan Bloom, escritor e professor de literatura que morreu de aids há 13 anos. O poeta alcoólatra Delmore Schwartz foi o inspirador de O Legado de Humboldt. Exemplos dessa síndrome de Zelig são inúmeros, mas bastam esses dois. A biografia de Belllow escrita por James Atlas há cinco anos não entra muito nessa seara. Não discute a possível esquizofrenia literária de um escritor magistral, que tentou unir a memória proustiana com a modernidade corrosiva e pessimista de Joseph Conrad, seu ídolo. Defende que a origem de seus traumas foi a morte da mãe, quando Bellow tinha apenas 17 anos. Por causa dessa tragédia, conclui Atlas, o escritor, filho de judeus russos nascido em Quebec, Canadá, teria procurado em cada uma de suas cinco mulheres a figura protetora da mãe. Evidentemente, falhou em todas as tentativas, mas seu biógrafo Atlas errou muito mais, ao considerar a literatura de Bellow dependente exclusivamente de sua vida, e não da de seus amigos.

Bellow não inventou o judeu sem esperança de Herzog, sua criação mais popular. Ele sempre esteve a seu lado. É o protótipo do homem culto, genial, deslocado e perdido entre culturas antípodas. No caso de Bellow, a russa e a americana. Os avós do escritor seguiam o Talmude na Rússia czarista. Os pais, a bolsa de valores canadense. Já Bellow preferiu seguir as garotas que se refugiavam nas bibliotecas públicas na Chicago dos gângsteres. Os americanos viviam a Depressão, mas Bellow preferia a diversão. Corria atrás dos livros de Virginia Woolf sem perder de vista as meninas que freqüentavam as bibliotecas para espantar a fome, provocada pela falta de dinheiro. Bellow sempre foi um vulcão sexual. Heterossexual. Mas sem muita convicção. Bellow tinha como modelo o citado amigo Allan Bloom, um acadêmico gay que gastava fortunas em roupas extravagantes e fez fama com um best-seller sobre a cultura liberal americana.

Aparentemente, Bellow foi também um homem liberal, sem preconceitos. Um de seus personagens mais conhecidos, o velho judeu Arthur Sammler de Mr. Sammler's Planet, critica o israelense que ataca um ladrão afro-americano com suspeita violência racial misturada ao ódio. Na vida real, Bellow provocou polêmica ao perguntar, numa entrevista, quem era o Tolstoi dos zulus, insinuando que a cultura negra não teria produzido um gênio literário como o russo. O livro foi escrito há 35 anos. É um retrato da bestialidade e da escalada da intolerância no mundo. Bellow, evidentemente, era um pessimista. Foi trotskista na juventude e recusou-se a seguir o modelo típico do escritor americano (Hemingway e companhia). Tampouco assumiu-se como um autor judeu. Dizia ser um escritor americano que, por acaso, também era judeu. Bem, o certo é que, lendo Herzog, fica difícil imaginar o depressivo Moses - sempre às voltas com Nietzsche e obcecado pela idéia do suicídio - como um gói. Ele é fruto de uma cultura que usa o humor como fuga para a condição trágica do excluído da terra prometida, do eterno exilado.

Para reforçar esse parentesco com o perdedor Herzog, Bellow adorava narrar a história de seus personagens na primeira pessoa. Seu modelo devia ser Charlie, o rico escritor de Humboldt, que, intimamente, apesar do sucesso, sentia-se um fiasco como pessoa. Antes de morrer, Bellow teve tempo para uma confissão: teria feito tudo diferente se vivesse de novo, dedicando menos tempo às mulheres. E, conseqüentemente, às suas neuroses