Título: Das gavetas do regime militar, o processo que investigou Quércia
Autor: Luciana Nunes Leal
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/02/2005, Nacional, p. A10

Um dos documentos em poder do Arquivo Nacional é a carta em que ministro pede a Geisel orientação sob como proceder no caso

RIO - Em 11 de setembro de 1978, o então ministro da Justiça, Armando Falcão, encaminhou uma "nota-consulta" ao presidente da República, general Ernesto Geisel, pedindo orientação sobre o que fazer com as investigações de enriquecimento ilícito envolvendo o então senador Orestes Quércia. O ministro relatou as dificuldades de encontrar provas, mas sugeriu que a apuração da Comissão Geral de Investigações (CGI) continuasse. Geisel concordou, anotando um "de acordo", rubricado, na primeira das quatro páginas da nota. A carta de Falcão é um dos documentos referentes a investigações de enriquecimento ilícito que estão atualmente no Arquivo Nacional, no Rio. A partir de março, o acervo será enriquecido com a chegada de todos os processos sobre o tema e sobre cassação de mandatos, enviados de Brasília pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Segundo o diretor-geral do Arquivo, Jaime Antunes, os documentos devem chegar sem restrições para consulta.

Por enquanto, no acervo da Divisão de Segurança e Informação (DSI) guardado no Arquivo Nacional há, além da pasta referente a Quércia, vários documentos sobre suspeitas de corrupção em prefeituras e repartições públicas. São informes e ofícios trocados entre as autoridades ligadas ao serviço de informação. O acervo da DSI é aberto para consulta.

"DELICADA MATÉRIA"

Na carta sobre Quércia, Armando Falcão revela que foram bloqueados os bens do senador, mas ressalta que a punição foi baseada apenas na "presunção" do crime. O ministro trata o assunto como "delicada matéria" e diz estar submetendo "o assunto à alta decisão" do presidente da República.

Falcão diz que há "sérias suspeitas" sobre Quércia e dá três opções: endossar o confisco de bens, arquivar o processo ou "insistir no prosseguimento das investigações, na tentativa de demonstrar o nexo de causalidade". Ele sugere a terceira alternativa, o que Geisel seguiu. Ao desaconselhar a primeira, Falcão alerta para o "sério risco político, pela repercussão do caso, consideradas as circunstâncias e a qualificação do indiciado". Quércia foi eleito senador em 74 com a maior votação da história do Estado de São Paulo e militava no MDB, de oposição à ditadura.

As investigações contra Quércia continuaram e os documentos da DSI mostram que o então senador ainda teve dificuldades para desbloquear seus bens. O acervo guarda ofício enviado por ele ao Ministério da Justiça, em 29 de janeiro de 1979, pedindo a liberação dos bens e o encerramento da "investigação sumária". No pedido, o senador defende-se, dizendo que nada foi provado contra ele.

O último documento arquivado é um bilhete manuscrito de Quércia, enviado em 3 de junho de 81 ao ministro da Justiça, na época Ibrahim Abi-Ackel. "Ficaria imensamente grato se o ilustre ministro, que todos sabemos assoberbado com muitos problemas, se lembrasse do processo do meu interesse e a respeito do qual falamos duas vezes", diz. A resposta de Abi-Ackel não está documentada.

NÃO LEMBRA

Na semana passada, Quércia disse não lembrar do pedido enviado em 1979 ao Ministério da Justiça, pois acreditava que o processo fora arquivado em 1978. "Talvez fosse para formalizar alguma coisa, não me lembro de ter feito nenhum requerimento." Sobre o bilhete a Abi-Ackel, assegurou que não tinha relação com a investigação de enriquecimento ilícito ou o bloqueio dos bens. "Não me lembro de que assunto tratava, mas não era isso, com certeza."

Quércia disse não ter conhecimento da carta em que Falcão consulta Geisel. "Ele (Falcão) fez tudo isso contra mim. O que me lembro é que encaminhei um pedido de investigação sobre o destino de desaparecidos políticos e nunca recebi resposta nenhuma. Este pedido não está arquivado?"

A CGI apurava supostos casos de corrupção na gestão de Quércia como prefeito de Campinas, cargo para o qual foi eleito em 68. Em 1974, foi eleito senador e em 77 surgiram as denúncias. Ele governou São Paulo de 87 a 91 e em 94 ficou em quarto lugar na disputa presidencial vencida por Fernando Henrique. Em 96, teve os bens mais uma vez bloqueados, por suposto envolvimento no rombo do Banespa, mas conseguiu na Justiça a liberação do patrimônio.