Título: O dom de iludir
Autor: DORA KRAMER
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/03/2005, Nacional, p. A6

Congresso ficará à espreita para voltar ao reajuste tão logo passe a onda contrária Pode reparar: mesmo com toda reação ao aumento de 67% nos salários de deputados e senadores, os congressistas não têm se manifestado peremptoriamente contrários ao aumento de 67% em seus salários. Só a meia dúzia de sempre firma oposição ao princípio. A maioria - acachapante, cumpre registrar - é contra reajustar os proventos agora que as circunstâncias transformaram a plataforma eleitoral de Severino Cavalcanti em bandeira de rejeição nacional.

Falam quase todas as excelências na impropriedade do "momento", sem conferir igual inadequação à proposta em si. Ou seja, agora não, mas ali adiante, na hora certa, de um jeito ou de outro, nem que seja por intermédio dos subterfúgios utilizados nos últimos anos - aumento de verbas de gabinete ou reajuste por ato administrativo -, um aumento qualquer vai sair.

Portanto, os civicamente empenhados em não deixar que o Parlamento leve a termo - e estenda (ou vice-versa) ao Judiciário - o aumento, tratem de manter viva a atenção, porque aos atores da cena política o que não falta é o dom de iludir.

Nem todos usam esse talento para o mal, mas, sendo a vocação inerente à profissão e - por que não? - em boa medida ao gênero nela majoritariamente representado, convém não dar a questão por resolvida só porque Severino não conseguiu o apoio esperado.

Os "demagogos" - como o presidente da Câmara denomina os colegas contrários à sua posição - estavam mais bem conectados à ruas que o imaginado por ele quando da voluntariosa declaração segundo a qual "pesquisas" indicavam o apoio da "sociedade" à concessão do aumento. Como se viu, Severino sonhou ou inventou.

Mas, tudo indica, ele poderá recuperar terreno. Quando tiver passado a onda de reprovação mais aguda e, principalmente, depois que estiver aprovado e devidamente absorvido o novo salário mínimo.

Sim, porque Severino queria aprovar logo o aumento não apenas para cumprir uma promessa de campanha e imprimir a marca de sua administração.

O assunto foi proposto para tramitação em regime de urgência a fim de estar sacramentado antes do início do debate anual sobre o reajuste do salário mínimo.

Os parlamentares teriam até meados de março para aprovar seus novos salários. Depois disso, governo e oposição começam a tão inútil (porque fica na periferia da questão) quanto habitual produção de palavrório a respeito do mínimo.

Se agora é um mau "momento", imagine o que seria a discussão da elevação dos proventos parlamentares de R$ 12.840 para R$ 21.500 frente ao reajuste do mínimo de R$ 260 para R$ 300.

Percebendo o clima adverso, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Nelson Jobim, tratou de ir ao Legislativo ontem pedir a desvinculação da proposta de aumento para o Judiciário da discussão sobre o reajuste dos deputados.

Jobim é político - chegou ao STF através da política e a ela voltará em 2006 - e, como tal, dono do já referido dom de iludir.

Objetivamente, não há como separar um assunto do outro. Os dois referem-se à emenda constitucional que estabelece o salário do ministro do Supremo como teto para o funcionalismo. Nada diz sobre obrigatoriedade de elevação dos atuais salários para o patamar mais alto.

Portanto, tanto Severino quanto Jobim utilizam-se de um sofisma - a necessidade de "cumprir a Constituição" - para maquiar o que não passa da defesa de concessão de privilégios a suas respectivas corporações.

Duas décadas

Dia 15 de março faz 20 anos que Tancredo Neves deveria ter tomado posse como primeiro presidente civil depois de 24 anos de regime militar. A circunstância da doença, e morte em 21 de abril, levou o vice José Sarney à Presidência da República e à condução da transição democrática.

Nessa condição, o hoje senador será o principal orador da sessão comemorativa do Congresso no próximo dia 15, para a qual serão convidados todos os integrantes do primeiro escalão de seu governo. Haverá depois missão em ação de graças na Catedral de Brasília.

Comentando as solenidades da data, alguns integrantes daquele governo ontem repassavam os nomes dos convidados e contabilizaram nove ministros já falecidos: Dilson Funaro, Renato Archer, José Hugo Castelo Branco, Roberto de Abreu Sodré, Aureliano Chaves, Carlos Santana, Marcos Freire, Roberto Cardoso Alves e Celso Furtado.

Todos serão homenageados. Junto com Tancredo e Ulysses Guimarães, é claro.

Poder externo

Chama a atenção de diplomatas a crescente presença do ministro da Casa Civil, José Dirceu, na agenda de política externa. Ele esteve semana passada na Argentina, agora esteve com investidores em Nova York e já está de encontro marcado com a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice.

Dirceu inova no que se refere aos antecessores, ausentes da pauta de política externa e até das comitivas presidenciais ao exterior. José Dirceu já acompanhou Lula em viagens internacionais e tem em seu gabinete um embaixador, Américo Fontenele, como assessor diplomático, posto anteriormente inexistente na estrutura da Casa Civil.