Título: Argentina ameaça estatizar empresas
Autor: Denise Chrispim Marin
Fonte: O Estado de São Paulo, 03/03/2005, Economia, p. B9

Governo endurece no embate sobre as tarifas dos serviços públicos

Em meio a um intenso processo de negociação de tarifas de serviços públicos na Argentina, o presidente argentino Néstor Kirchner ameaçou esta semana estatizar empresas privatizadas se for necessário para garantir o fornecimento desses serviços no país. Na abertura dos trabalhos legislativos, na terça-feira, Kirchner dedicou a maior parte de seu discurso à negociação com as empresas de serviços públicos, "uma disputa desigual", em que o governo "defenderá com unhas e dentes os direitos do povo argentino". Para o presidente argentino, a negociação com as empresas, prevista para durar até meados do ano, é a discussão pendente mais importante para o país. Os problemas do governo argentino com as empresas de serviços públicos começaram depois da desvalorização do peso em 2001, que provocou uma inflação de 50% no ano seguinte e o congelamento das tarifas de serviços como água, energia e telecomunicações, por motivos políticos. Desde então, muitas empresas têm tido dificuldade para operar e descumpriram investimentos previstos em suas concessões.

A empresa de água e saneamento de Buenos Aires é um caso emblemático, como lembrou em editorial publicado ontem o jornal chileno Mercurio. A empresa Aguas Argentinas vem descumprindo os investimentos acordados em seu contrato, alegando que o valor baixo das tarifas impossibilita o cumprimento das metas. Para permitir os investimentos, a empresa propõe que o governo os subsidie. Este, por sua vez, quer em troca uma participação societária, o que a empresa rejeita.

O episódio com a Aguas Argentinas reinicia um ciclo que se repete há mais de 70 anos na América Latina, diz o jornal. As empresas de serviços públicos começaram no setor privado atendendo à população de alta renda. Com o tempo, os serviços foram ampliados para a classe média. Quando ocorria uma crise econômica, os políticos adotavam controles sobre as tarifas, limitando a possibilidade de investimento das empresas. Como resultado, o serviço se deteriorava, até que o governo decidia estatizar o serviço. Estatal, a empresa era administrada por critérios políticos, o que levava a mais ineficiência e novas carências de investimento, causadas por restrições orçamentárias. A solução, adotada por muitos países nos anos 90, era privatizar as empresas, em troca de investimento.

"Esse ciclo está recomeçando na Argentina", diz o Mercurio, destacando a decepção dos investidores que aplicaram nas privatizações e comparando-a ao resultado da renegociação da dívida, onde os detentores dos títulos terminaram com apenas 30% do valor de face dos papéis. "As conseqüências não tardam: um déficit incipiente na infra-estrutura dos serviços públicos e um atraso tecnológico crescente em telecomunicações e informática", conclui o jornal.