Título: Democracia e terrorismo
Autor: Fernando Henrique Cardoso
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Na manhã do dia 11 de março de 2004, dez bombas explodiram em quatro trens, matando 190 pessoas e ferindo mais de 2 mil na cidade de Madri. A grande maioria das vítimas vinha de bairros populares e se dirigia para o trabalho. Os autores deste atentado pertenciam a um grupo terrorista islâmico.

O atentado de Madri ocorreu exatamente dois anos e meio depois do ataque, no dia 11 de setembro de 2001, ao World Trade Center de Nova York. Desde então, a luta contra o terrorismo tem ocupado o centro da agenda internacional. Há boas razões para isso. O terrorismo representa um novo tipo de ameaça global à paz e segurança de todos. A utilização indiscriminada da violência contra a população civil como meio de intimidação política fomenta o medo e a divisão entre povos, religiões e culturas. O risco de um ataque com armas químicas e bacteriológicas é real e, ocorrendo, terá conseqüências imprevisíveis.

As condições para uma resposta conjunta da comunidade internacional se fragmentaram depois da invasão do Iraque, em conflito com a ONU e ao arrepio do Direito. O terrorismo é um problema de extrema complexidade, para o qual não há soluções fáceis. Respostas violentas podem agravar o problema, em vez de resolvê-lo. Ações unilaterais enfraquecem a ordem internacional e geram maior insegurança. A leniência pode ser ainda pior. O terrorismo representa um ataque frontal à democracia como espaço de convivência e solução pacífica de conflitos, mas só pode ser vencido de modo duradouro com os recursos e os valores da própria democracia. Como, entretanto, ser eficaz no combate ao terrorismo e manter vivos os sentimentos e as práticas democráticas?

Este desafio levou o Clube de Madri - organização que reúne, sob minha presidência, 55 ex-chefes de Estado e de governo democráticos - a promover, em colaboração com o governo da Espanha e a prefeitura, um encontro internacional em Madri no primeiro aniversário do atentado de 11 de março, para discutir uma nova estratégia global de combate ao terrorismo.

Participam do debate dirigentes políticos, especialistas no tema e líderes da sociedade civil. Nossa orientação fundamental é a de que a melhor resposta ao terrorismo é o fortalecimento da democracia dentro de cada país e a construção de uma governança democrática no plano internacional que não hesite no combate ao terrorismo, nem, ao combatê-lo, se envolva em práticas quase tão abjetas quanto as utilizadas por ele.

Essas metas são ambiciosas. A democracia não se impõe de cima para baixo nem de fora para dentro. Tampouco é um conceito abstrato. É sempre uma construção coletiva que deve se traduzir em algo vivo e concreto para a população. No mundo contemporâneo se criam cada vez mais espaços para a participação e a deliberação dos cidadãos, ao mesmo tempo que se fortalece o arcabouço das instituições representativas tradicionais, indispensáveis à legitimidade da ordem democrática.

Os cidadãos têm múltiplos interesses e identidades superpostos. Podem ser trabalhadores ou "burgueses"; mas, de igual ou maior importância para cada um, dependendo de seu sexo, idade, orientação sexual e fé religiosa, são seus valores, estilos de vida, padrões de consumo e perspectivas de futuro. Cada vez mais os cidadãos participam de movimentos e organizações que promovem suas causas e interesses. Ou, simplesmente, se comunicam diretamente com as autoridades, protestam na rua ou exprimem sua opinião em jornais e websites.

A democracia hoje não é apenas o voto, ela é a argumentação e o debate. As decisões e regras devem refletir a variedade de pertencimentos e de valores. Quanto mais participativo e transparente o processo, mais legítima a decisão. A democracia vive da informação livre, do respeito aos direitos de cada pessoa, do direito à privacidade, da liberdade de opinião, de organização e de participação política. O terrorismo é o antípoda de tudo isso: ele vive do segredo e da supressão da liberdade.

Os líderes são democráticos quando se abrem ao debate e se dispõem a traduzir o que ouvem em ação concreta. Ao mesmo tempo, cabe-lhes fortalecer a democracia para preservá-la de seus inimigos. Os líderes não se podem omitir diante do perigo terrorista, comprazendo-se em repetir palavras generosas de tolerância e boa-fé. Daí a necessidade de juntar crença democrática e ação eficaz, sem se perder num banal "os fins justificam os meios" (dogma próprio da visão dos terroristas) nem numa contemplação imobilista, à espera de que o convencimento pela razão altere os comportamentos dissonantes.

Em Madri, vamos discutir, com líderes da sociedade civil que estão na linha de frente da luta pela democracia, novas formas de aliança e solidariedade. A democracia não pode ser fortalecida no âmbito nacional e enfraquecida no internacional. Este é um segundo grande desafio que queremos enfrentar. A resposta global ao terrorismo tem de se pautar pelo respeito aos direitos humanos e aos princípios da ordem internacional. Só quando se fortalecem os liames democráticos no plano internacional é possível gerar a confiança entre os povos e os governos. Sem esta, o entrosamento dos serviços de inteligência antiterrorista e a troca de informações, que é indispensável para antecipar os ataques e combater as redes terroristas com eficácia, se tornam muito difíceis, se não impossíveis. Para paralisar o uso pelos terroristas dos meios globalizados que dão eficácia a suas ações (a internet, o sistema bancário, o tráfico de armas e de drogas, etc.) é preciso constituir redes globais de defesa da democracia. Estas só se efetivarão quando se esboroar a desconfiança no campo democrático de que uns querem ser mais donos do mundo e das virtudes do que outros. Só uma autêntica cooperação multinacional capaz de envolver os povos, além dos governos, permitirá aumentar a eficácia da luta contra o terror.

A reunião de Madri será também uma oportunidade para um novo diálogo com administração americana sobre os riscos do unilateralismo para a paz e a segurança do mundo. Como é possível proclamar a promoção da liberdade e da democracia como a mais importante meta a ser alcançada, como fez recentemente o presidente Bush no seu discurso de posse no segundo mandato, e, ao mesmo tempo, adotar políticas que enfraquecem a ONU, mecanismo fundamental de que dispomos para uma governança global democrática?

O melhor tributo que poderemos prestar às vítimas do terrorismo em Madri e em outras partes do mundo será o delineamento de um plano de ação que envolva todos os governos e povos do mundo na luta contra o terrorismo dentro dos princípios da democracia. A Espanha heróica que, na pessoa de Miguel Unamuno, um de seus maiores pensadores, se indignou com os que proclamaram, durante a guerra civil, "Viva a Morte! Abaixo a Inteligência!", haverá de inspirar-nos, uma vez mais, para a reafirmação da esperança na paz, na democracia e na vida.

Fernando Henrique Cardoso, sociólogo, foi presidente da República