Título: O impossível acontece
Autor: Gaudêncio Torquato
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

O impossível continua a acontecer depois da eleição de Severino. Os agentes secretos brasileiros aperfeiçoarão seus conhecimentos em Cuba. Não é galhofa. A Agência Brasileira de Inteligência (Abin), por intermédio de seu diretor Mauro Marcelo de Lima e Silva, já abriu conversa com o regime do comandante Fidel Castro para que os quadros da nossa polícia secreta recebam treinamento nas técnicas desenvolvidas pelos cubanos para controlar o país. Até onde se sabe, os pilares do regime cubano se assentam nos Comitês de Defesa da Revolução, gigantesca rede civil, presente nos quarteirões das cidades, com participação obrigatória dos cidadãos com mais de 14 anos. Sua função básica é a vigilância, o que implica, muitas vezes, delatar os próprios participantes. Os agentes brasileiros vão receber treinamento em "seguridad del Estado" - coisa de deixar os "secretas" do famigerado SNI, predecessor da Abin, morrendo de inveja.

É até compreensível que brasileiros acossados pela ditadura e refugiados em Cuba elejam as plagas de Fidel como a segunda pátria. Laços psicológicos e afetivos penetram nas entranhas das pessoas, construindo e reconstruindo identidades. É notório que ilustres figuras do País, a partir de ministros de Estado, guardam a ilha caribenha no cantinho mais íntimo do coração. Até aí, tudo bem. O que não é aceitável, sob nenhuma hipótese, é ver o Brasil buscando em Cuba conhecimentos para modernizar a segurança. Por mais que se pretenda justificar o regime cubano, seja na perspectiva de luta contra a "opressão norte-americana", seja na visão de uma experiência com índices positivos nas áreas da educação e saúde, há que fazer o registro: Cuba é controlada por uma ditadura. E ditadura não pode ser exemplo para nenhuma democracia. Os agentes brasileiros vão ter aprendizagem em técnicas de vigilância social, a partir de grampeamento de telefones, câmeras escondidas, estruturas de pressão, muito medo e delação generalizada. Afora isso, talvez guerra de guerrilha e métodos da Al-Qaeda.

Mas o impossível acontece noutras searas. Não é que o ministro Nilmário Miranda, da Secretaria dos Direitos Humanos, viajou para a China com a missão de intercambiar experiências sobre direitos humanos? Até onde a vista alcança, a China abre-se para a economia de mercado, mas continua a ser um país ditatorial no campo das liberdades. Está na lista dos mais bárbaros, executando, anualmente, cerca de 10 mil pessoas, enquanto outras 250 mil estão presas em campos para reeducação pelo trabalho. Acaba de sair o Relatório Anual 2004 sobre Direitos Humanos. Os mais graves absurdos foram cometidos na China, na Rússia e em Cuba. Tortura, campos de trabalho forçados, execuções rotineiras e delações entre membros de uma mesma família estão na ordem do dia dos "direitos humanos" na China. É isso que o ministro Nilmário foi conhecer? Queira Deus que a "troca de experiências" não signifique importação do cardápio chinês.

Tem algum sentido escolher Cuba e China como modelos nas áreas de segurança e direitos humanos? O que se passa com o nosso presidente e seus ministros? Por que tanta confusão, incoerência, imprecisão e descontrole? A falta de lógica se soma à confusão mental. Basta ver o ministro José Dirceu dizendo que a oposição quer desestabilizar o País, por conta dos pedidos de esclarecimento em razão do "discurso atravessado" de Lula no Espírito Santo. Ora, nos oito anos de FHC, a oposição raivosa, liderada pelo PT, apresentou nada menos que 22 processos de crime de responsabilidade contra o então presidente. É claro que o PSDB e o PFL estão usando a moeda usada no passado pelos partidos de oposição. O fato é que ninguém quer dar o braço a torcer. A crise estaria equacionada com o simples reconhecimento do presidente de que falou mais que devia. Ponto final.

Mas a modéstia não combina com o aparelho vocal de Lula. Que continua a cometer sua "quase lógica" com a pérola jogada esta semana aos trabalhadores no congresso da Contag: "Pela primeira vez, o Brasil não tem um presidente, mas um companheiro na Presidência da República por quatro anos." Quer dizer, o companheiro na Presidência não é presidente. É complicado. A mesma lógica o faz vituperar contra os baixos proventos do funcionalismo público e, logo depois, conceder aumento geral de 0,1% para os servidores públicos. A radiografia da ilógica se completa com os 67% de aumento que Severino queria aprovar para os deputados.

A extravagância continua também a ocorrer no espaço do Fome Zero, o famoso programa que Lula criou para dar aos brasileiros três refeições por dia. Pois bem, em Dourados, Mato Grosso do Sul, nas últimas semanas sete crianças da etnia guarani-caiová morreram por desnutrição. E no outro Mato Grosso, em Campinápolis, a desnutrição matou outras seis crianças da etnia xavante, nos dois primeiros meses deste ano. Este é o Brasil real, bem diferente daquele que Lula expõe ao mundo em seus périplos. Se as sementes do Fome Zero Indígena não chegam ao estômago das crianças, os discursos ocos continuam a entusiasmar platéias.

Puxar aplausos tem sido o esporte predileto do presidente. Nos seus mais de 650 discursos em quase 800 dias de governo, Lula exibe por inteiro o estilo palanqueiro que lhe abriu os caminhos da História. Dos "vivas" das massas operárias no Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, ao barulho das claques organizadas, seja nos ambientes palacianos ou em eventos em todo o País, Lula tem sido fiel, não tanto aos sonhos, mas ao traquejo verbal, acalentado na contundência e amparado no uso enviesado da linguagem nativa. Continua a ser um orador radical. Ninguém poderia imaginar que o impossível voltaria a ocorrer até no plano do disse-que-não-disse-o-que-disse. Em se tratando do presidente, tudo é possível. Agora, Lula não entende a "radicalidade" da oposição, que lhe cobra esclarecimentos a respeito das denúncias de corrupção no governo passado. Lula, o radical, abomina outros radicais. Isso só ocorre no Brasil boquirroto, onde até o título deste artigo tem alguma lógica.