Título: Quebrar o gesso
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Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Notas e Informações, p. A3

O Brasil tem um orçamento engessado por grande volume de gastos obrigatórios e vinculações de receitas. Isso torna muito difícil controlar a despesa pública e obter o máximo proveito de cada real aplicado pelo governo. Mas começam a surgir, pela primeira vez, condições políticas para se mudar esse quadro. Um grupo de parlamentares propõe uma reforma do processo orçamentário. Romper a rigidez do gasto oficial é uma das propostas mais ambiciosas postas em discussão.

O deputado Paulo Bernardo (PT-PR) propõe a adoção de prazos para a vinculação de receitas. Poderá não ser a melhor solução, mas, se adotada, representará um avanço. De toda forma, está aberto um debate que até agora a maior parte dos políticos vinha evitando.

Muitos defendem a adoção de um orçamento impositivo, isto é, de um regime em que o governo seja obrigado a executar os gastos aprovados pelos parlamentares. Mas pouquíssimos têm batalhado por um sistema orçamentário mais racional e mais propício à boa gestão do dinheiro público.

O Ministério da Fazenda incluiu no último acordo com o Fundo Monetário Internacional (FMI) o compromisso de iniciar estudos para a desvinculação de receitas. Se o orçamento se tornar mais flexível, o esforço de ajuste fiscal, que ainda será preciso manter por vários anos, com ou sem acordo com o FMI, será menos penoso.

Hoje, as chamadas despesas discricionárias, isto é, decididas livremente pelo governo e pelos parlamentares, ficam entre 10% e 15% da receita disponível depois de todas as transferências e gastos obrigatórios. O ajuste incide nessa parcela, que inclui a maior parte dos investimentos. Se o orçamento fosse mais administrável, o sacrifício imposto pela busca do equilíbrio fiscal seria menor, porque seria mais fácil a distribuição dos cortes.

Em 1970, a vinculação orçamentária envolvia cerca de 30% da receita. Com a Constituição de 1988 e legislação posterior, essa parcela chegou a 78% nos últimos anos. Os gastos obrigatórios, como os da folha de pessoal, correspondem a 64% das despesas não financeiras. É possível usar parte das receitas vinculadas para pagar despesas obrigatórias. Assim, somadas as vinculações e os gastos obrigatórios, que em parte se superpõem, o resultado é um grau de rigidez de 89% das despesas não financeiras do orçamento federal. Esses números resultam de estudos de especialistas e aparecem num trabalho divulgado em 2004 pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

A parte "flexível", portanto, corresponde a cerca de um quinto do orçamento, mas também essa "flexibilidade" é limitada, pois desse dinheiro ainda sai uma parcela do custeio.

As principais despesas obrigatórias, como as da Previdência e do pessoal, só se tornarão mais flexíveis com reformas legais e mudanças administrativas politicamente complexas. O governo tem enorme dificuldade política para ajustar o quadro de pessoal às conveniências de seus programas. Como não consegue administrar esse gasto, também não é capaz de selecionar o pessoal de que precisa, nem de pagar salários adequados aos funcionários de maior qualificação.

No caso da Previdência, mudanças foram aprovadas, nos últimos anos, mas sabe-se que são insuficientes e que será preciso aprofundar a reforma.

As vinculações valem tanto para impostos quanto para contribuições. Sua justificativa inicial pode ter sido razoável: seria preciso garantir verbas para a educação e para a saúde, assim como seria conveniente amarrar determinadas contribuições a certos investimentos.

Mas vinculações de verbas tendem a resultar em gastos programados por inércia, sem atenção às necessidades efetivas e sem avaliação da qualidade dos serviços e dos investimentos. Além disso, vinculações e regras de aplicação mínima de recursos em determinados itens acabam criando um aumento automático de gastos.

Se o crescimento da economia resulta em elevação da receita, parte da arrecadação adicional é automaticamente comprometida com certos tipos de despesas. Essa destinação automática não tem vinculação com critérios de qualidade e limita a capacidade inovadora da política econômica. É preciso enfrentar esse problema e aproveitar, para isso, a rara oportunidade que surge neste momento.