Título: 'Dinheiro a mais para escolas é só propaganda'
Autor: Gabriel Manzano Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Nacional, p. A11

Nas contas do ex-reitor da USP, anteprojeto da reforma não atende ao acordo com os reitores

ENTREVISTA - ROBERTO LEAL LOBO, professor, consultor e ex-reitor da USP

O aumento de recursos anunciado pelo Ministério da Educação para as universidades federais na reforma universitária, tão festejado pelo governo, é apenas um jogo de palavras. A proposta contém, de fato, um acréscimo de uns 70% para 75% da verba do ministério para aquele setor, mas falta dizer que, bem feitas as contas, é menos dinheiro do que o já garantido ao setor pelo orçamento da União em 2005. O cálculo é feito pelo professor e consultor Roberto Leal Lobo, ex-reitor da USP e um dos maiores especialistas do País em gestão na área de educação. "Deve haver um erro de cálculo ou de interpretação", adverte Lobo, que diz já ter levado o problema a auxiliares diretos do ministro Tarso Genro, dos quais não obteve ainda qualquer resposta.

Lobo fez uma conta simples de subtração: a partir do orçamento total da União, foi descontando uma série de itens obrigatórios (ver quadro ao lado) e no final chegou a dois números distintos: primeiro - e só como exemplo, pois o projeto não valerá para este ano -, os recursos de 75% prometidos no anteprojeto, para as instituições federais de ensino superior (Ifes), somariam em 2005 R$ 5,3 bilhões. Em seguida, Lobo constatou que a soma de dinheiro já alocada para as Ifes, também em 2005, é de R$ 7,99 bilhões, cerca de 50% a mais.

Não se trata de cobrar que o MEC, de uma só tacada, resolva um problema tão antigo - a escassez de dinheiro para a educação. O que se cobra, observa o consultor, é uma postura realista: as universidades continuarão com um piso mínimo aquém do que precisam. A luta por verbas suplementares, que já é rotina, vai continuar. E a festa em torno do "aumento de recursos" parece propaganda para vender o anteprojeto às escolas e à sociedade.

Esse é um ponto crucial a ser esclarecido, afirma Lobo - mas ele tem outras perguntas. Uma delas: como o MEC explica que, depois de passar um ano inteiro ouvindo tantas entidades educacionais, fazendo tantos encontros, apresenta um anteprojeto que ignorou tudo o que lhe foi sugerido? E, se agora o ministério dialoga e diz que vai incluir isto e aquilo no próximo texto, pode-se mesmo acreditar? "Se vai ter de mudar tanto, é porque foi malfeito", resume. Por fim, ele deixa um recado: a universidade só vai melhorar quando for tratada como o que ela é: uma empresa.

O MEC anuncia, no anteprojeto de reforma universitária, um bom aumento para as universidades federais: 75% do orçamento da pasta. É um valor adequado?

As contas indicam que os recursos a mais, assegurados pelo anteprojeto, são inferiores ao que elas já estão gastando, ou vão gastar, em 2005. O orçamento do ano está em torno de R$ 144 bilhões, mas, tirados os vários compromissos legais, caberão às instituições federais, pelo anteprojeto, cerca de R$ 5,3 bilhões. Ora, os valores já destinados às Ifes, descontados gastos com inativos e incluídas receitas próprias, estão em R$ 7,99 bilhões. O MEC aumentou um pouco a fatia mas é preciso deixar claro que a lei lhes reserva menos do que elas já gastam, e não mais.

Mas todas as áreas do governo lutam, ao longo do ano, por verbas suplementares, não?

O problema é que não se pode confundir o que a lei garante com o que um reitor consegue aqui e ali, a cada ano, em convênios e fundações. As universidades federais brigaram muito para garantir um piso mínimo que lhes permitisse sustentar-se. O anteprojeto não está atendendo a esse pleito. Quando o mínimo garantido em lei é insuficiente, toda vez que o governo tiver problemas financeiros reagirá cortando o orçamento, limitando-se a dar o que a lei obriga. Enfim, a recuperação financeira das universidades federais é uma promessa por cumprir. Ou há um erro de cálculo, ou um erro de interpretação.

Então, o projeto anunciado, de fazer o ensino superior público chegar a 40% do total do setor até 2011 está começando errado?

Essa é outra conta estranha. Quando se fala em 40%, cabe perguntar: 40% do quê? Se nos próximos anos o setor privado tiver uma grande expansão, os 40% terão de ser muito mais alunos, professores e despesas. Qual a estratégia? Vão congelar o setor privado, ou sair correndo atrás do crescimento deles? O que o ensino público precisa é ter sua própria meta e deixar outros setores pra lá.

O anteprojeto, nisso, é apenas quantitativo?

É competitivo. O objetivo, parece, é tirar a força do setor privado.

A qualidade de gestão no ensino superior é hoje melhor que há cinco ou dez anos?

A gestão tem melhorado, mas principalmente no setor privado. Isso porque nele há concorrência, a instituição tem de valorizar o dinheiro que entra das mensalidades. Quanto ao setor público, quem avançou de fato foram as universidades de São Paulo. A partir da autonomia, em 1988, elas tiveram de cuidar de seus próprios recursos, priorizar metas.

O sr. pode dar exemplos concretos dessa melhoria?

Fizemos um balanço sobre dez anos de autonomia da USP. Nessa década ela diminuiu o número de professores e funcionários, aumentou o número de alunos em graduação e também em pós-graduação. Aumentaram os trabalhos publicados, cresceu muito o número de teses. Todos os indicadores cresceram e o custo/aluno por ano diminuiu.

Isso não aconteceu nas universidades federais?

A gestão no setor federal é bem mais complicada. Eles (os reitores) têm pouca autonomia financeira. Vai muito dinheiro para o quadro de pessoal, verbas de custeio são apertadas e tudo o mais vem de contratos e convênios via fundações. O dinheiro já chega carimbado. Se um reitor de instituição federal diminui o número de funcionários, não ganha nada em troca. Apenas perde os recursos. Assim, acabar o clientelismo e enxugar quadros fica difícil.

O ministro da Educação, Tarso Genro, tem ouvido sugestões e concordado com várias, dizendo que serão incluídas no anteprojeto da reforma universitária. Admitiu mexer nos 30% do capital externo. Avisou que conselhos comunitários são só consultivos e as universidades estaduais terão capítulo à parte na reforma. O debate está no bom caminho?

O curioso nisso é que o ministério nos informa duas coisas paradoxais. Primeiro, diz que antes de fazer o anteprojeto ouviu a sociedade, um monte de associações. De repente, prepara o anteprojeto e muitas dessas entidades criticam, voltam a pedir aquilo mesmo que já tinham pedido antes. Para que serviram tantos meses de discussão prévia? Pelo visto, o anteprojeto foi precipitado. Se vai ter de mudar tanto, é porque foi malfeito.

O governo argumenta que o setor privado cresceu indiscriminadamente nos últimos 10 anos. Que transformou a educação em mercadoria, buscou lucro e só ataca o projeto porque não aceita ser controlado. Esse é o problema?

O setor privado, quando era pequeno, ganhou qualidade contratando professores da universidade pública, que davam aula nos dois lugares. Mas depois as públicas se arrumaram, pagaram tempo integral e o corpo docente das privadas perdeu qualidade. Elas passaram a trabalhar com as classes C e D. Aí mudou a qualidade de oferta, os alunos eram piores do que os que iam para as escolas públicas. Mas se você olhar as privadas de 2000 e as de 2004, não há grande mudança de resultados. Pelo provão, as novas instituições não são piores que as de dez anos atrás.

O ex-ministro Paulo Renato Souza diz que esses problemas vinham sendo atacados e os índices estavam melhorando. O MEC estava na direção certa e ia resolver o problema?

Acho que o ritmo dessa correção estava lento. Alguns cursos que deveriam ter sido fechados não foram punidos. A avaliação institucional, que era uma complementação do exame nacional de cursos, acabou não sendo feita. Isso atrapalhou e tirou a eficácia do provão. Uma avaliação institucional deve incluir gestão pedagógica, infra-estrutura e eficácia financeira, para dar a cara da instituição, dizer se ela é boa ou não. A divulgação desse trabalho, seria fundamental para as escolas e para o País.

O que é preciso para a gestão adquirir padrão internacional?

Cada instituição de ensino precisa redefinir, ou criar, a sua missão. O objetivo é trabalhar em qual área? É fazer pesquisa? É só atender à demanda em uma região? Quando o MEC dá o credenciamento, isso é apresentado de modo pasteurizado, e não é checado por ninguém. No Brasil é assim. O sujeito faz uma avaliação, encaderna de vermelho e põe na estante. Aí faz o planejamento estratégico, encaderna de azul e põe na estante. Ninguém usa. Só vai mudar quando alguém do governo visitar a escola, livro na mão, e cobrar o que estava prometido, e punir quem esqueceu os compromissos.

Ou seja, a universidade tem de ter a mentalidade de uma empresa.

Ela é uma empresa. Seu objetivo é prestar serviços na área da educação. Pública ou privada, o importante é que atenda ao que a sociedade precisa. Que defina muito bem o que quer e como consegui-lo, porque os recursos são escassos. Enquanto não entendermos isso, nada vai mudar.