Título: Em julgamento, o discurso liberal
Autor: Martin Peretz
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Internacional, p. A18

Creio que foi John Kenneth Galbraith quem declarou a morte do conservadorismo, no início dos anos 60, auge do liberalismo pós-New Deal (nos EUA, o termo liberalismo representa ideais de esquerda). O conservadorismo, disse Galbraith, estava "sem livros", um veredicto tipicamente galbraithiano, ou seja, olímpico. Sem livros, não há idéias. E é verdade: o conservadorismo americano era, na época, uma coleção de preconceitos mal-humorados, uma igreja fechada com uma doutrina arcaica proclamada por figurões decadentes.

William F. Buckley Jr. vem à mente, além de alguns outros cujos nomes não seriam lembrados hoje por quase ninguém. Tome-se como exemplo Russell Kirk, um intelectual conservador especialmente proeminente que, como escreveu Clinton Rossiter (ele próprio um conservador moderado), "começou a soar como um homem nascido com 150 anos de atraso no país errado".

Neste momento da História, é o liberalismo o alvo desses julgamentos. E é compreensível. É o liberalismo que agora está sem livros e morrendo. O pensador mais influente do velho liberalismo, o teólogo protestante Reinhold Niebuhr, é praticamente desconhecido nos círculos onde outrora falava e escutava, talvez porque tivesse uma visão sombria da natureza humana.

Por mais fascinantes que fossem suas iluminações, por mais que elas tenham sido validadas pela História, os liberais não têm paciência para tal pessimismo. Assim, quem substituiu Niebuhr, outrora o tribuno dominante na cidade e na universidade? É como se ninguém sequer tentasse preencher o vazio. Aqui e ali, é claro, um personagem de universidade aparece para defender um pequeno ponto didático e o comprova com um vasto e intricado aparato acadêmico. Em qualquer caso, é o aparato que se destina a persuadir, não a idéia.

Perguntem a vocês mesmos: quem é uma mente liberal realmente influente em nossa cultura? Cujas idéias desafiam e cujos ideais inspiram? Cujos livros e artigos são lidos e passados adiante? Na verdade não há ninguém. O que sobrou é uma longa lista desconexa: o catálogo de programas (alguns questionáveis, outros não) que os republicanos não estão financiando e os blogs, com sua dose diária de pânico sobre como o governo Bush está arruinando o país.

A Europa também está fazendo a viagem de desilusão com a social-democracia, mas por um caminho diferente. Suas elites não haviam previsto que uma imigração muçulmana praticamente descontrolada poderia seqüestrar o Estado de bem-estar social e envenenar a cultura pós-guerra de relativa tolerância que sustentava suas políticas.

Pelo contrário, as elites esquerdistas da Europa deram ao eleitorado uma falsa sensação de segurança afirmando que os recém-chegados simplesmente faziam o trabalho que os europeus não podiam fazer, graças aos índices de crescimento populacional historicamente baixos no continente. Não haveria nenhum custo social ou cultural.

Assunto encerrado. Bem, não era tão simples. E, embora a força de trabalho ainda precise de mais trabalhadores, as economias da Europa têm sido prejudicadas por garantias sociais a grandes famílias que nem sempre têm um assalariado em casa. Assim, mesmo na Escandinávia e nos Países Baixos moralmente satisfeitos, a conversa tranqüilizadora da esquerda não tem mais crédito.

O conflito entre direita e esquerda nos Estados Unidos é diferente. O que anima o conservadorismo americano é o futuro do Estado regulatório e a trajetória do federalismo. Os próprios conservadores não chegaram a um consenso sobre o quanto querem retrair a regulamentação ou a autoridade do governo nacional. Estas questões não são axiomáticas para eles, como pode ser visto em seu sucesso determinado e transgressor, na semana passada, ao autorizar não os Estados contra Washington, e sim Washington contra os Estados na área da lei de delitos civis.

EEL11.1>Como Jeffrey Rosen já observou nestas páginas, muitas dessas questões serão resolvidas nos tribunais. Mas não todas. Assim, não será possível evitar um grande debate nacional.

Os liberais têm reflexos nessas questões, e esses reflexos os levam a uma posição defensiva. Mas eles ainda não promoveram uma discussão interna honesta assumindo desde o princípio que a própria natureza do país mudou desde o grande ajuste de contas do New Deal.

Certamente há algumas questões sobre as quais o Estado regulatório pode relaxar. Sem dúvida também há outras que podem voltar para os Estados. Mas os liberais sabem que a atitude da direita - ideologicamente emoldurada, mas com motivação de classe - de retirar o governo da economia precisa ser combatida. Haverá simplesmente vítimas demais deixadas à beira da estrada.

COMPETIÇÃO

Ao mesmo tempo, a política americana ainda não encarou um fenômeno que está há anos nas primeiras páginas da imprensa financeira internacional. É o espectro vertiginoso da competição econômica da China, cuja posse de títulos do Tesouro dos EUA deixa o dólar vulnerável a um tremendo declínio se os chineses decidirem vendê-los (há um novo modelo de sociedade surgindo diante de nossos olhos: uma economia capitalista voraz sob uma tirania política comunista impiedosa). Os Estados industrializados da Europa e, previsivelmente, o Japão estão fechando as portas em vez de aceitar o desafio da China. Mas a China não irá embora.

Também há um capitalismo voraz em nosso país. Certamente não é tão brutal quando o da China. Mas é desmoralizador e punitivo. Além disso, ameaça suas próprias fundações éticas. A grande façanha do capitalismo dos EUA é ter se tornado democrático, permitindo que a população depositasse confiança razoável em suas instituições. A extensão mesma da propriedade de ações na forma de fundos mútuos, fundos de pensão e posses individuais é um tributo à confiabilidade de quem faz o mercado, as próprias corporações, e seus fiadores.

Hoje sabemos que grande parte dessa confiança era equivocada e algumas das companhias e instituições financeiras mais estimadas estavam adulterando a contabilidade e dando vantagem aos favorecidos. Eliot Spitzer nos deu uma grande lição sobre nossa vulnerabilidade.

Muitas corporações individuais, bancos de investimento, corretoras de valores, seguradoras, auditores e, certamente, advogados que examinaram seus contratos e outros arranjos foram cúmplices na violação da confiança pública. O que a certificação de um relatório financeiro por uma firma de contabilidade realmente prova quando cada uma das quatro grandes companhias (antigamente cinco) foi culpada de comportamento antiético em vários casos?

O que aconteceu em Wall Street nos últimos anos é a mesma coisa que se os médicos dos grandes hospitais-escola dos Estados Unidos decidirem em segredo abandonar o juramento hipocrático. Por alguma razão, até os liberais relutam em encarar esta realidade da vida corporativa e financeira do país. Sim, é verdade que a ganância desempenha um papel, até mesmo um papel criativo, no progresso econômico. Mesmo assim, a ganância não pode ficar sem controle. Qual o objetivo de um liberal responsável se ele não assume essa tarefa?

Os liberais gostam de culpar seus consultores políticos. Mas se você depende de consultores para as idéias que o motivam, você não está em lugar nenhum. Assim, é melhor admitirmos: os próprios liberais não estão inspirados por uma visão da boa sociedade - problema que não tínhamos há três décadas. Por vários anos, a agenda liberal tem parecido e soado como pouco mais que um exercício de guarda-livros. Queremos gastar mais, eles querem gastar menos. No fim, os números não esclarecem; eles confundem. Quase ninguém consegue explicar qualquer princípio por trás das diferenças de custo. Mas há grandes questões que precisam ser tratadas, e a maior é o que devemos uns aos outros enquanto americanos.

CONFIANÇA

Pessoas voluntariamente dedicadas umas às outras independentemente de classes e raças, profissões e etnias, tendem a confiar umas nas outras, como um paciente confia em seu médico e um estudante confia em seu professor. Não é fácil ilustrar essa visão em termos práticos. Mas nós a temos no sangue.

Esteja ou não em nosso sangue, é uma tarefa exigente e de longo prazo. É muito mais fácil, mais confortável, repetir os velhos refrões. Pode-se facilmente levantar uma multidão fazendo-a cantar We Shall Overcome (Nós Venceremos). Uma das idéias mencionadas com facilidade pelos liberais americanos é o tema dos direitos civis dos anos 60. Outra é que o poder dos EUA é perigoso para os outros e perigoso para nós. Isso também é uma reprise dos anos 60, do fim dos anos 60. A virtude retorna, ao que parece, com a mera pronúncia das palavras.

Um dos legados dos anos 60 é o idealismo liberal em relação à raça. Mas essa discussão tornou-se particularmente fora de moda no Partido Democrata. Os afro-americanos e os caribenhos-americanos (sendo que a diferença entre eles é outra realidade quase nunca mencionada) deram enormes passos em sua educação, mobilidade social, emprego, habitação e política como imagens e realidades na mídia. Até o abismo de acúmulo de riqueza entre brancos e negros começou a diminuir e, neste caso, nem mesmo uma tremenda conquista individual ao longo de uma geração pode compensar as vantagens acumuladas do dinheiro herdado ao longo de duas ou três gerações. Ainda assim, os últimos 30 anos separam dois mundos. As estatísticas comprovam. E também sabemos muito bem disso.

Mas no Partido Democrata, entre os liberais, os ativistas usuais ainda são aclamados. Jesse Jackson ainda é pago, principalmente para não causar problema. O maior insulto a nossos concidadãos negros foi o respeito dedicado a Al Sharpton durante a campanha. No início da disputa, estava claro que ele - como Carol Moseley Braun e Dennis Kucinich - não era um candidato sério. Mas ele foi tratado como se pudesse tomar posse em 20 de janeiro.

No fim, ele ganhou apenas um punhado de delegados. Mas lá estava ele, falando perto do horário nobre na convenção democrata. Sharpton é um incitador de conflito racial. A ele podem ser creditados o escândalo fraudulento e desumanizador em torno de Tawana Brawley (misturando escatologia e sexo), a violência em Crown Heights entre judeus e negros, um incêndio no Harlem, os protestos em torno de uma mercearia coreana no Brooklyn e assim por diante. Mas a imprensa liberal trata Sharpton como um líder genuíno, até mesmo um líder moral, o anti-herói como estadista partidário.

Essa atitude complacente é prova de que, por mais profundos que tenham sido os ganhos sociais e econômicos entre os afro-americanos, muitos liberais preferem manter sua posição condescendente consagrada pelo tempo diante dos "outros", os necessitados.

Isto, francamente, está em claro contraste com o presidente Bush, que parece não ser detido por diferenças raciais (e diferenças de gênero) em suas nomeações e entre seus amigos. Talvez seja apenas uma questão de geração, e, se for isso, também é algo bom.

Mas ele pode ser o primeiro presidente que aparentemente não separa as pessoas em categorias raciais ou sexuais. Branco ou negro, mulher ou homem, contanto que você seja um conservador. Isto também é uma expressão de libertação de preconceitos.

É mais do que interessante o fato de os liberais terem tanta dificuldade para entender o novo contexto da raça nos Estados Unidos. É, para sermos diretos, patético. E deixa trabalho por fazer. Em sua opinião majoritária no caso Grutter vs. Bollinger (o caso de ação afirmativa em Michigan), a juíza Sandra Day O'Connor escreveu que a Corte acreditava que, dentro de 25 anos, não haveria mais necessidade de ação afirmativa. A menos que as coisas mudem rapidamente, ela está completamente equivocada.

Quase dois anos se passaram desde aquele veredicto e praticamente nada foi feito para garantir que as crianças de cor - e também as outras crianças, já que a crise em nosso sistema educacional ignora raça e classe - recebam um tipo diferente e melhor de ensino, em ciência e alfabetização, do que aquelas que agora ingressam em nossas faculdades. Não se trata do programa Head Start (Sair na Frente). Trata-se de uma reforma total do ensino e do aprendizado.

Os conservadores têm suas idéias, e muitas delas são boas, como as escolas públicas independentes e até os vales. Mas mostrem-me uma única idéia liberal com alguma atualidade, ou mesmo uma noção estrutural, para modificar a transmissão do conhecimento e do pensamento para os jovens. Vocês não conseguirão.

REVOLUÇÕES

Resta então a questão do poder dos EUA, a outra sobra dos anos 60. É verdade: os liberais americanos não acreditam mais na virtude axiomática das revoluções e dos revolucionários. Mas encaremos: é difícil ter uma conversa franca sobre Cuba com um deles. Não obstante as evidências fartamente documentadas da tirania de Fidel Castro, ele ainda goza de um prestígio residual entre nós. Afinal, ele sobreviveu à hostilidade do Tio Sam por mais de 45 anos. E não, os vietcongues não existiram de verdade. Mas foram, ao mesmo tempo, as picaretas e os porretes de Ho Chi Minh no sul.

Pergunte num jantar no Upper West Side de Manhattan: o que foi pior, o nazismo ou o comunismo? Certamente, a resposta será o nazismo, porque o comunismo tinha um ideal do bem. Isso apesar do fato de as revoluções e os regimes comunistas terem assassinado muitos milhões a mais de inocentes e transformado o anseio de igualdade de muitos idealistas numa brutal afirmação do mal, uma marca de pontapé estampada no rosto humano para sempre.

Peter Beinart argumentou, também nestas páginas (Uma fé lutadora, 13 de dezembro de 2004), a favor de uma vasta mobilização nacional e internacional contra o fanatismo islâmico e o terrorismo árabe.

Tipicamente, as mesmas pessoas que queriam que os Estados Unidos deixassem o comunismo triunfar - na Itália e na Grécia pós-guerra, na França no meio da guerra fria e em Portugal no fim da guerra fria - criticam os atuais esforços dos EUA no Oriente Médio. Pode-se ouvir o prazer em suas vozes - pode-se ler o prazer em suas palavras escritas - com nossos problemas no Iraque. Há meses, os liberais propagam um cenário de desastre atrás do outro, um fato contraditório de algum modo reforçando outro, agora esperando, sem realmente acreditar, que suas visões sombrias se tornarão realidade.

Acredito que elas não se realizarão. Mas isso não vai diminuir a queixa liberal. Esta queixa não é uma questão circunstancial. É uma aflição permanente da mente liberal. Não é um sintoma; é uma condição. E é uma condição relacionada às esperanças desesperadas que os liberais dirigiram às Nações Unidas. Este é seu ímã. Mas o ímã não cumpre a tarefa. Não é um ímã para o bem. Ele faz a mágica dos perversos. É corrupto, é pomposo, é acorrentado a tiranos e cínicos. Não reconhece um genocídio quando o genocídio é visto e entendido por todos. O liberalismo precisa hoje ser libertado de muitas de suas próprias ilusões e enganos. Esperemos ainda ter a força necessária.