Título: A história não tão secreta da espionagem à moda antiga
Autor: Gabriella Dorlhiac
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Internacional, p. A19

Autores de livro sobre KGB x CIA falam das dificuldades do espião na era do terror

ENTREVISTA - JAMES RISEN e MILT BEARDEN

Para reconstruir os bastidores da espionagem entre os Estados Unidos e a União Soviética no final da guerra fria, o jornalista americano James Risen e o ex-agente da CIA Milt Bearden tiveram que entrevistar centenas de ex-espiões de ambos os lados. O resultado de seu trabalho, o livro O Grande Inimigo - A História Secreta do Confronto Final entre CIA e KGB, lançado neste mês no Brasil, mostra de maneira detalhada o sistema de inteligência, revelando a vida dos espiões nas ruas de Washington e Moscou. Em entrevista ao Estado, eles falaram sobre os desafios da CIA, a queda de seus preconceitos em relação à KGB e o novo papel da espionagem no mundo sob o terror.

No passado, a espionagem era dirigida para descobrir a extensão do poder de outro país, seja militar, científico ou tecnológico. Qual é o papel da espionagem hoje, dado que poucos países são capazes de esconder a extensão de seu poder?

Milt Bearden - O alvo da espionagem mudou de nações-Estado para "jogadores independentes". Espiões não podem mais encontrar seu alvo no circuito diplomático. Têm de ir até seu esconderijo. É um jogo totalmente diferente.

James Risen - O ponto mais importante para a inteligência americana é entender o terrorismo patrocinado por jogadores independentes, sem Estado, como a Al-Qaeda. Esta tem sido a maior falha da inteligência americana. Continuamos achando que há um Estado patrocinador porque não queremos aceitar que uma organização independente tenha tanto poder.

É correto afirmar que a tecnologia está tomando o lugar das habilidades pessoais de um espião? Apesar de ser ficcional, ainda há lugar para um James Bond?

Bearden - A tecnologia nunca substituirá um espião bem colocado. Todos os nossos fracassos de inteligência antes da guerra no Iraque mostram a falta de material humano.

Risen - O verdadeiro problema da inteligência americana não é a tecnologia. É a falta de espiões no lugar certo. A CIA não tem espiões com bom acesso na Al-Qaeda, ainda não tem agentes na insurgência iraquiana e não consegue nos dizer o que o Irã e a Coréia do Norte estão planejando.

Em todo o livro vemos americanos e soviéticos trocando de lado e espionando para o inimigo. Isto seria mais difícil hoje?

Bearden - Traição, de certa maneira, sempre fará parte da condição humana. Homens e mulheres continuarão sendo traidores por ganância, medo, vingança ou apenas tédio. E há muito pouco que se possa fazer para se proteger.

Risen - Acho menos provável hoje que um americano espione para a Al-Qaeda, do que para a URSS durante a Guerra Fria. Em primeiro lugar, ninguém sabe onde encontrar um membro da Al-Qaeda e depois, eles são assassinos brutais e não geram muita simpatia dentro dos EUA.

O livro mostra como a CIA começou a perder credibilidade e poder nos EUA. Hoje vemos que o Pentágono, por razões políticas, está executando tarefas que eram da CIA. Acham que a agência poderá recuperar esse poder e credibilidade? O que terá de ser feito?

Bearden - A CIA pode nunca mais recuperar sua posição de primazia na comunidade de inteligência dos EUA. Na verdade, pode ser necessário criar uma agência completamente nova para lidar com os desafios de inteligência.

Risen - A agência está arrasada, e não tenho certeza de que possa sobreviver em sua forma atual. Os EUA precisarão de algum tipo de central de inteligência, mas é possível que ela seja engolida pelo Pentágono. Isto seria uma tragédia, pois o propósito da criação de uma agência civil foi ter um órgão independente que fornecesse análises honestas aos legisladores. Os líderes do Pentágono que querem ir à guerra poderão manipular as informações para justificar seus atos.

Em um artigo recente publicado pela revista New Yorker, Seymour Hersh afirma que o Pentágono está tomando o lugar da CIA na realização de operações secretas. Isto permitiria que as operações fossem livres de qualquer controle, ao contrário do que acontecia na CIA. Vocês concordam com isso?

Bearden - Hersh coloca um ponto válido, mas se alguém na atual administração acha que pode evitar o controle do Congresso, está delirando. O Congresso já está se preparando para analisar a fundo o que acontece na inteligência militar.

Risen - Acho que isso está acontecendo e é muito perigoso. O Pentágono está se aproveitando da fraqueza da CIA para roubar suas atribuições .

Quais foram as dificuldades enfrentadas no processo de entrevistar centenas de agentes da CIA e da antiga KGB? Quem se mostrou mais relutante em falar?

Bearden - A dificuldade das entrevistas variou. Alguns dos agentes da CIA foram extremamente cautelosos e foi necessário entrevistar vários para construir uma história completa. Por outro lado, muitos dos ex-agentes da KGB foram surpreendentemente abertos.

Risen - Foi mais difícil conversar com ex-agentes da CIA do que da KGB. A CIA impõe regras rígidas para o contato com a imprensa e seus ex-agentes têm dificuldades em mudar essa posição. Em contraste, muitos ex-agentes da KGB tinham rancor em relação a seus chefes após o colapso da União Soviética, e não mantinham muita lealdade .