Título: Governo testará células em cardíacos
Autor: Clarissa Thomé e Cristina Amorim
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Vida, p. A26

Ministério começa este mês a selecionar 1.200 voluntários para verificar eficácia e segurança de terapia com células-tronco adultas

O Ministério da Saúde começa a selecionar no fim deste mês 1.200 voluntários para estudo com células-tronco do tecido adulto para tratar cardiopatias. O projeto vai atender pessoas que apresentam quatro tipos de problemas no coração: enfarte agudo do miocárdio, isquemia crônica, miocardiopatia dilatada e doença de Chagas. O estudo será coordenado pelo Instituto Nacional de Cardiologia Laranjeiras (INCL), no Rio, terá quatro centros-âncora - um deles o próprio INCL - e abrangerá 33 centros do País em 10 Estados e o Distrito Federal. O estudo faz parte de um projeto do ministério lançado no ano passado que visa a confirmar a eficácia e a segurança dos tratamentos, a fim de adotá-los pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Segundo o governo federal, a intenção é investir agora na ciência para economizar no futuro em internações.

Os voluntários fazem parte da segunda fase de experiência, que pode levar dois ou três anos, e serão divididos em grupos de 300 pessoas - um para cada doença. Todos passarão pelo tratamento convencional, mas apenas a metade receberá o transplante de células-tronco. O restante ficará no chamado grupo de controle. Nem mesmo os médicos que acompanharão a evolução dos pacientes saberão quais foram submetidos à terapia celular.

"É muito comum em medicina o chamado efeito placebo. Ao se deparar com uma nova terapia, o estado psicológico do paciente melhora e o quadro de saúde também. Com o estudo duplo-cego, em que médico e paciente não sabem quem recebeu a célula-tronco, queremos afastar o aspecto psicológico", explica o coordenador da pesquisa, Antônio Carlos Campos de Carvalho, chefe do Departamento de Ensino e Pesquisa do INCL.

Os interessados em participar da pesquisa podem se inscrever no site do INCL (www.incl.rj.saude.gov.br) e clicar em Terapia com Células-Tronco - Veja as Instruções para Cadastramento. Ou pelo telefone (0xx21) 2205-5422.

Wagner Souza Lima, de 37 anos, foi um dos primeiros a se inscrever. Dez anos atrás, ele descobriu que sofria de miocardiopatia dilatada. A doença faz o coração crescer a ponto de não conseguir bombear sangue para todo o corpo. "É uma doença progressiva, limitante, que me obriga a tomar cinco ou seis remédios diferentes por dia. Às vezes não tenho dinheiro para comprar todos os medicamentos", diz Lima, que tem crises em que fica com dificuldades para respirar.

"Eu praticava remo, corria de 8 a 10 quilômetros por dia e aos 27 anos não podia fazer mais nada", conta. Lima foi demitido do bingo em que trabalhava depois que descobriu a doença e hoje trabalha como passeador de cães. "Meu mundo acabou quando descobri a doença. Quatro médicos disseram que só o transplante me salvaria e meu coração teria cinco anos de vida útil. Estou muito esperançoso com essa pesquisa", disse.

TESTES RIGOROSOS

A expectativa de Lima é refletida em Deosdete Xavier, de 69 anos. Ele participou da primeira fase de testes no Instituto do Coração (Incor), em São Paulo, que concentra os estudos para tratar a isquemia aguda, e recebeu células-tronco retiradas de sua medula há seis meses. Na ocasião, ele também fez uma revascularização, mas deve sua melhora à terapia experimental. "Antes, tomava 19 comprimidos por dia; hoje, só três. Fico muito feliz em contribuir para a pesquisa, porque ela vai beneficiar muita gente", diz.

Xavier foi selecionado porque apresentava um quadro grave, apesar de já ter passado por todos os tratamentos possíveis. Sua seleção só foi aprovada após uma rigorosa bateria de testes. Apenas uma pequena parcela dos pacientes tem o perfil procurado pelos cientistas.

Mesmo assim, muitas pessoas têm procurado o serviço. No Incor, uma conta de e-mail (celulastronco@incor.usp.br) foi criada há alguns meses especialmente para suprir a procura dos interessados. "Só que de 70% a 80% das mensagens que chegam são descartadas automaticamente, pois são de pessoas que sofrem com outras doenças ou ainda podem passar por algum tipo de tratamento", conta o coordenador clínico do projeto em São Paulo, Luis Henrique Gowdak. "Aos demais é pedido que enviem um relatório médico para analisarmos o caso."

A expectativa dos pacientes tem criado desconforto entre os médicos, pois a terapia é incipiente. Além disso, cada voluntário precisa cumprir uma lista de condições extremamente exigentes em um protocolo aprovado pelo Conselho Nacional de Ética e Pesquisa (Conep). "Por mais que eu seja simpático e solidário com a pessoa, não vou aceitar alguém que não preenche os critérios", conta Gowdak. "Não consigo imaginar uma pesquisa humana de outra maneira. É uma terapia experimental. Não se conhece os riscos, apenas imagina-se os benefícios."