Título: Nova lei deve destravar pesquisas de plantas imunes a pragas
Autor: Fernando Dantas
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Vida, p. A27

Projetos da Embrapa de feijão, mamão e batata modificados se arrastam há anos, cerceados pela regulação confusa e complexa

SANTO ANTÔNIO DE GOIÁS - Numa área de 625 metros quadrados na Embrapa Arroz e Feijão, em Santo Antônio de Goiás, nos arredores de Goiânia, foram plantadas há pouco mais de uma semana 3.750 sementes de feijão transgênico, teoricamente resistente à praga do mosaico dourado, que freqüentemente devasta as plantações de pequenos agricultores na safra do início do ano. Entres os pés ainda rasteiros, o engenheiro agrônomo Josias Faria, de 54 anos, doutor em fitopatologia pela Universidade de Wisconsin, circula de jaleco e luvas, equipamento obrigatório pela legislação brasileira, já que o feijão transgênico é considerado equivalente a um produto agrotóxico. "Fiz uma foto uma vez para uma revista sem o jaleco e as luvas e fui advertido", conta Faria. Ele considera ridícula, em termos científicos, a idéia de que o contato tátil ou olfativo com os pezinhos de feijão transgênico representem algum risco à saúde. Ainda assim, segue à risca as prescrições legais, porque sabe que tudo pode ser usado como arma na guerra ideológica em torno da biotecnologia alimentar no Brasil.

Agora, com a aprovação da Lei de Biossegurança, que centraliza de novo na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) os poderes de regular e autorizar as pesquisa com transgênicos no Brasil, surge uma luz no fim do túnel para os cientistas de biotecnologia. Embora o Ministério do Meio Ambiente afirme que a lentidão na liberação das pesquisas tenha sido resolvida a partir de 2003, muitos pesquisadores vêem a nova lei como um marco para o seu trabalho.

"Para nós que fazemos pesquisa, é como se acordássemos de um pesadelo", diz Carlos Labate, professor associado do Departamento de Genética da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), da Universidade de São Paulo (USP), em Piracicaba. Labate pesquisa há seis anos uma variedade de eucalipto transgênico com biomassa ampliada, em um projeto com a Suzano Bahia Sul Papel e Celulose.

CETICISMO

Mesmo com a aprovação da Lei de Biossegurança, ainda há ceticismo na comunidade científica. A bióloga e advogada Mônica Amancio, secretária-executiva da Rede de Biossegurança da Embrapa, explica que a vigência da nova lei vai facilitar muito a pesquisa, em comparação com o caos legal e regulatório que prevaleceu desde 1998, mas faz a ressalva: "O conflito está longe de acabar, porque virou uma questão mais emocional e ideológica do que técnica e não vai ser resolvida no papel."

No Departamento de Fitopatologia da Universidade Federal de Viçosa, o professor Murilo Zerbini diz que as exigências do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para liberar os testes de campo tiram a competitividade dos centros de pesquisas brasileiros diante das multinacionais. Segundo Zerbini, que conduz uma pesquisa para criar um maracujá resistente à principal doença que afeta a planta, o endurecimento dos frutos, "o Ibama faz uma série de exigências de impacto ambiental que uma universidade não tem condições de atender; é irônico que só as multinacionais consigam atender".

Com a aprovação da nova lei, segundo a advogada Mônica, deixam de ser aplicáveis para a pesquisa de transgênicos todos os muitos procedimentos burocráticos e exigências do Ibama, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Agricultura e de outros órgãos. "É só a CTNBio que analisa, dando duas autorizações, para pesquisa em laboratório e no campo", diz a especialista.

Para Zerbini, a nova lei é um avanço. "Estávamos num vácuo legal, não sabíamos aonde ir e a CTNBio estava sendo apedrejada." Ele ressalva, porém, que teme a interferência política do Conselho Nacional de Biossegurança (CNBS) nas deliberações técnicas da CTNBio. O CNBS, que será composto por 11 ministros e vinculado à Presidência da República, terá o poder final de decisão sobre o uso comercial dos transgênicos. "Gostaria que a CTNBio tivesse a última palavra", fala Zerbini.

PESQUISAS ATRASADAS

O feijão transgênico da Embrapa é um dos muitos exemplos de pesquisas em biotecnologia que avançaram em ritmo lentíssimo nos últimos anos, desde que uma sentença judicial em 1998, contra a soja transgênica, virou de cabeça para o ar a regulação dessa atividade. "Já perdemos quatro anos na pesquisa desse feijão", reclama Francisco Aragão, outro engenheiro agrônomo da Embrapa envolvido no trabalho.

Há cinco anos, recorda Aragão, a Embrapa já estava em fase avançada de desenvolvimento de variantes transgênicas - resistentes a diferentes tipos de pragas causadas por vírus - de feijão, mamão e batata. Daquele momento em diante, porém, as três pesquisas se arrastaram morosamente, em meio aos trâmites burocráticos e legais de complexidade kafkiana surgidos no vácuo da sentença judicial contra a soja transgênica.

Segundo Aragão, a partir de 2000 as dificuldades para pesquisar transgênicos ficaram ainda mais intensas. Uma decisão da Justiça enquadrou as plantas transgênicas com resistência a pragas na lei de agrotóxicos. Com isso, para que sejam testadas em campo, é preciso o Registro Especial Temporário (RET), do Ministério da Agricultura, num processo de aprovação no qual também estão envolvidos a Anvisa, o Ministério da Saúde e o Ibama.

Por causa da falta de normas para regulamentar o RET dos transgênicos, o teste do feijão da Embrapa foi retardado em vários anos, continua Aragão. "Estava tudo pronto, mas tivemos de esperar." Mônica nota que o RET do feijão, do mamão e da batata transgênicos foi pedido em 2001. No caso do mamão, a aprovação só ocorreu em dezembro de 2003; no do feijão e da batata, em 2004.

Aragão observa que, pelas regras atuais, não há nenhuma flexibilidade em termos de tempo e espaço para o experimento. Assim, a licença é para plantar o produto transgênico numa área e num momento rigidamente definidos. Segundo ele, se fosse possível, o teste com o feijão transgênico teria sido feito em 2004, quando houve um forte surto de mosaico dourado numa área de programa (não transgênico) de melhoramento de feijão da fazenda experimental de Santo Antônio de Goiás. E o local escolhido para o teste seria contíguo àquela área.

Mas as regras para testes de transgênicos não permitem aquele tipo de mudança, e o experimento de dezembro acabou sendo inconclusivo pela fraca manifestação da praga na área definida. Aragão teme que o mesmo ocorra agora. Nesse caso, perde-se mais um ano, porque o mosaico dourado só se manifesta na safra desta época do ano. Assim, Faria, o cientista encarregado dos testes de campo, torce para que, desta vez, haja um ataque para valer do vírus do mosaico dourado ao feijão transgênico recém-plantado.