Título: Apesar do crescimento do PIB...
Autor: Lídia Goldenstein
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Aliás, p. J3

O "vôo da galinha" não é só figura de retórica da nossa economia - mas uma real possibilidade

Toda vez que alguém fala ou escreve sobre o "vôo da galinha", eu acho graça e lembro a primeira vez que ouvi essa expressão. Foi em 1984, quando eu trabalhava no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) com o atual prefeito de São Paulo, José Serra, que convidou as então jovens economistas do Grupo de Conjuntura do Cebrap, Mônica Baer e eu, para o seminário "Estratégias alternativas de desarrollo de las economias de Argentina, Brasil, Chile e Uruguai", promovido pelo Centro de Investigaciones Económicas (Cinve) e o Cebrap, em Montevidéu. Entre os participantes do seminário, um economista argentino, Adolfo Canitrot, referindo-se à impossibilidade de a economia Argentina crescer naquele momento, cunhou o termo "vôo da galinha". Canitrot, um típico portenho angustiado, preocupava-se com as baixas taxas de investimento da economia e a insustentabilidade de um crescimento puxado pela demanda de bens de consumo assalariado.

Mostrando com um movimento dramático dos braços, Canitrot previa um rápido porém efêmero crescimento, o qual, sem a retomada firme dos investimentos, não teria como se sustentar. Como a galinha, a economia não alçaria um vôo alto e, muito menos, longo.

De forma simples e engraçada, Canitrot resumia todo um debate de teoria econômica: sem altas e persistentes taxas de investimento, nenhuma economia decola.

Mais de 20 anos depois, se é simpático saber que ajudei a introduzir essa expressão no Brasil, e fazendo um justo reconhecimento a seu autor, é triste constatar que a atual generalização de seu uso não é apenas uma figura de retórica, mas uma real preocupação quanto à possibilidade de a economia brasileira finalmente voltar a crescer a elevadas taxas por um bom tempo.

Mas por que essa dúvida justo agora, quando o IBGE acaba de anunciar um crescimento do PIB de 5,2% em 2004 e os outros dados da economia revelam que 2005 começou com bons indicadores?

É justamente a análise dos fatores que contribuíram para o crescimento da economia em 2004 que nos leva à triste percepção de que os dilemas e as contradições da atual política econômica são suficientemente fortes para gerar dúvidas quanto à continuidade do crescimento nos mesmos patamares.

A economia brasileira cresceu em 2004 apesar das sucessivas elevações da taxa de juros. Geralmente, uma política monetária contracionista demora de seis meses a um ano para afetar o nível de atividade e provocar a desaceleração de uma economia. O ano de 2004 foi atípico graças a uma sucessão de fatores que não só adiaram o impacto da política monetária, como provocaram o crescimento da economia.

Primeiro foram as exportações. As empresas brasileiras puderam usufruir o crescimento do comércio internacional, pois vinham não só se reestruturando desde o início dos anos 90, tornando-se mais competitivas, como aguçando sua compreensão da importância das exportações como mecanismo de hedge, de captação de financiamentos mais baratos e de contrapeso das desacelerações freqüentes do mercado interno. Além disso, puderam contar com a continuidade e ampliação de políticas voltadas para o incentivo ao comércio exterior que começaram a ser implementadas no final dos anos 90, início dos 2000.

Conquistando novos mercados e com novos produtos, as exportações brasileiras cresceram 18% em 2004, passando a representar cerca de 16% do PIB (era apenas 8% em 1994). Ou seja, cumpriram um papel completamente diferente do habitual, deixando de ser um resíduo para se tornar uma das principais alavancas do crescimento.

Depois foi o crédito. Em meados de 2004, algumas mudanças estruturais que levaram à redução do risco começaram a ter efeito, aumentando significativamente o crédito e, conseqüentemente, seu impacto na economia: descontos em folha, acordos de diversos bancos com lojas do varejo e a implementação de fundos de recebíveis, que permitem alavancar a capacidade dos bancos de conceder financiamento. O estoque de crédito com desconto em folha, por exemplo, pulou de R$ 6,3 bilhões em janeiro para R$ 12,4 bilhões em dezembro. Apesar de ainda baixo (7,5% do PIB em 2004) comparativamente aos países desenvolvidos, nos quais chega a 15%, 20% do PIB, o crédito ao consumo viabilizou vendas e o crescimento de alguns setores da economia, especialmente os de bens de consumo duráveis. Também nesse caso assistimos a uma novidade que modificou os determinantes do crescimento da economia em 2004.

Obviamente incentivados por esses setores que funcionaram como locomotivas da economia, os investimentos voltaram a crescer, levando a Formação Bruta de Capital Fixo a um aumento de 10,9% em 2004, depois de uma queda de 5,1% em 2003.

Então, o que impede que esses setores que puxaram a economia brasileira em 2004 continuem cumprindo o mesmo papel em 2005 e, dessa forma, criem as condições para que um círculo virtuoso tenha início, viabilizando a retomada dos investimentos na magnitude necessária para que o vôo não seja outra vez efêmero como o de uma galinha?

Infelizmente, várias coisas. A primeira é a atual política econômica, cujo objetivo maior tem sido atingir uma meta de inflação irrealisticamente estipulada em 5,1%.

Como apontado acima, os efeitos de uma política monetária contracionista em geral demoram de seis meses a um ano para ser sentidos. Mudanças estruturais no papel das exportações e do crédito na economia brasileira adiaram e amorteceram o impacto das elevadas taxas de juros. Entretanto, absorvidas as mudanças estruturais e mantidas as elevadas taxas de juros, o impacto da política contracionista começa a se manifestar.

E o estranho não é que comece a se manifestar, mas sim que as mesmas autoridades econômicas que implementam uma política contracionista mistifiquem as taxas de crescimento de 2004, apontando-as como prova da correção de suas opções. Independentemente do julgamento das opções, se a política era para ser contracionista e não o foi, é porque não teve sucesso no seu objetivo.

Entretanto, a taxa de crescimento da Formação Bruta de Capital Fixo no quarto trimestre de 2004, com relação ao terceiro trimestre do mesmo ano, já foi negativa em 3,9%, sinalizando, se não ainda a provável insustentabilidade do vôo da economia brasileira, taxas de crescimento bem menores em 2005.

O segundo fator que deve contribuir para menores taxas de crescimento do PIB brasileiro em 2005 é uma esperada desaceleração do crescimento das exportações. Mesmo mantido o atual dinamismo no comércio internacional e contando com o impacto positivo das exportações da Companhia Vale do Rio Doce, graças à recente elevação de seus preços, em algum momento nossas exportações sofrerão o impacto da valorização do real resultante das elevadas taxas de juros brasileiras, que provocam forte atração dos capitais internacionais de curto prazo.

A apreciação da moeda brasileira afeta as exportações ao desestimular o processo de conquista de novos mercados e a oferta de novos produtos e, pior que tudo, ao desestimular novas empresas a entrar no mercado internacional. Só permanecerão exportadoras as empresas que conseguirem reajustar suas vendas em dólar ou as que tinham margens especialmente elevadas.

Como o impacto da valorização do real é diferenciado por setores, produtos e até mesmo empresas, sua quantificação é impossível. Entretanto, não é exagero dizer que, mantida a atual política, estamos correndo o risco de enfraquecer o processo virtuoso que estava finalmente conseguindo fazer das exportações uma das fontes de dinamismo da economia brasileira.

Quanto à continuidade do papel alavancador do crédito, também existem mais dúvidas do que certezas por se tratar de algo novo na economia brasileira. Entretanto, é óbvio que a manutenção da expansão do crédito como financiador do consumo depende do crescimento da renda e do emprego, que está ameaçada pela política monetária contracionista. Por quê? Porque a expansão do consumo, ainda que sem sinal algum de explosão, já está sancionando a recomposição das margens das empresas que vêm suportando há alguns anos aumentos de custos de seus insumos e bens intermediários, pressionando a inflação.

Ou seja, por definição (da meta), a economia não pode crescer muito e, toda vez que o fizer, terá de ser compulsoriamente desacelerada. Assim, mantida a atual meta de inflação, a galinha não pode voar. Se voar, terá de ser abatida a taxas ainda mais elevadas de juros.

Mais uma vez aborta-se o início de um círculo virtuoso, impedindo a retomada dos investimentos na magnitude necessária, e instala-se um círculo vicioso. A diferença é que desta vez não foi um choque externo, foi uma opção das autoridades econômicas.