Título: O discurso atravessado
Autor: Alcides Amaral
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Embora a gota d'água tivesse ocorrido há cerca de dez dias em Jaguaré, no Espírito Santo, e a imprensa venha exaustivamente explorando o assunto, não posso deixar, com todo o respeito, de fazer algumas observações sobre a incontinência verbal do nosso presidente, dada a seriedade de algumas manifestações e eventuais implicações. Quando, de camisa branca colada ao corpo pelo suor, o presidente Lula afirmou que "alto companheiro veio prestar contas" e lhe confessou que "nossa instituição está quebrada", pois "o processo de corrupção que aconteceu antes de nós foi muito grande", determinando, a seguir, que o companheiro fechasse a boca e que a denúncia ficasse entre eles, não imaginou a repercussão que sua fala viria a ter. Certamente acreditava estar apenas tendo uma conversa com "companheiros" e que o "discurso atravessado" - como o próprio Lula o definiu no dia seguinte - passaria ao esquecimento. Ledo engano.

As denúncias foram graves e, se verdadeiras, deveriam ter merecido ação imediata do presidente da República, de quem se espera que mande apurar os fatos, e não calar-se por conveniência. Sua irritação com a imprensa na última semana, em Montevidéu - "um dia vou perguntar à imprensa o que ela acha da repercussão que foi dada ao assunto", retrucando aos assédios dos jornalistas -, demonstra que, infelizmente, seus improvisos não são devidamente pensados. O excesso de pronunciamentos cria constrangimentos, como aquele que levou o senador Jefferson Peres (PDT-AM) a reagir, afirmando na tribuna do Senado: "O fato é tão grave que, desculpem-me a franqueza, sou sempre muito franco, duvido que o presidente estivesse sóbrio."

Discordo do senador, pois quem viu o presidente Lula pela televisão tem a certeza de que ele sabia bem o que estava dizendo, só não imaginava que sua platéia não fosse restrita a "companheiros". Por essa razão, a reação da "tropa de choque" do PT, querendo justificar o injustificável - "não foi bem assim", "não foi isso que ele quis dizer", etc. -, soa ridícula. É bom que essas "lideranças" saibam que o Brasil não é formado por 180 milhões de imbecis que não têm capacidade de ver, ler e ouvir. O presidente Lula foi traído pelo que mais gosta de fazer, falar em público, e aí é que mora o perigo.

Tivesse sido essa a sua primeira manifestação "atravessada", tudo bem, todos têm o direito de errar. Mas quem fala para os "companheiros" e, por tabela, para toda a população brasileira, quase uma vez por dia, corre riscos desnecessários. Assim foi quando deixou escapar o plano de poder do PT - pretende ficar no governo por uns 20 anos -, ao declarar: "Fui agora no Gabão aprender como é que um presidente consegue ficar 37 anos no poder e ainda se candidatar à reeleição." E mais recentemente, para enaltecer os seus méritos como presidente, declarou: "Em 2003, vocês acompanharam o sofrimento. Pegamos a casa depois de um vendaval como aquele que deu na Ásia e tivemos que consertar." Isto é, o governo do PT conseguiu domar o "tsunami" que ele mesmo criou.

Aprendi ao longo da minha vida profissional, lidando com experientes profissionais de marketing e comunicação, que o "número 1" das grandes corporações, e o Brasil é a maior delas, deve ser preservado. Que venha a público esporadicamente, com declarações e pronunciamentos relevantes. O dia-a-dia fica para seus subordinados, cada um na sua área de atuação.

Nesse contexto, o que se espera do presidente da República é que ele se comunique, sim, com seu povo quando tem algo importante a dizer. Que, entretanto, gaste boa parte do seu tempo despachando e cobrando resultados dos seus ministros. Que mantenha diálogo próximo com as lideranças do Congresso Nacional para melhor encaminhar os assuntos de interesse da Nação. Que intervenha, com sua liderança e autoridade, sempre que necessário para recolocar o País nos trilhos, e não para criar crises como a atual, proporcionada por puro descontrole verbal.

O que surpreende a muitos é que, apesar das derrotas políticas do governo (em especial a eleição do deputado federal Severino Cavalcanti para a presidência da Câmara), o prestígio do presidente Lula continua alto entre os brasileiros e os mercados permanecem tranqüilos. Mas tudo tem explicação.

A aceitação do presidente Lula continua alta porque o que o povo quer é trabalhar. A economia está crescendo e mais de 2,5 milhões de postos de trabalho foram criados em 2004. Enquanto essa for a realidade do nosso país, tudo bem. As crises passarão ao largo da opinião pública.

Os mercados, por sua vez, continuam comportados graças ao "abençoado" Copom, que, ao fazer das nossas taxas de juros as mais altas do mundo, continua atraindo expressivo volume de recursos do exterior. São capitais de curto prazo, que vêm em busca de lucro fácil e fazem com que o dólar fique comportado, a Bolsa de Valores dê bons retornos e o risco Brasil permaneça em baixa. Essa é, entretanto, uma situação que se pode prolongar por mais tempo, enquanto o cenário fornecer oportunidades de arbitragem aqui, no Brasil. Mas, não sejamos ingênuos, vai terminar no dia em que o dinheiro aplicado lá fora der rendimentos adequados. E, quando tal acontecer, é importante que o clima político aqui, no Brasil, esteja sob controle, caso contrário, os mercados não nos irão perdoar.

É hora, pois, de o PT sair do palanque e começar, de fato, a governar.