Título: Terá sido conjurado o Grande Medo?
Autor: Marco Antonio Rocha
Fonte: O Estado de São Paulo, 07/03/2005, Economia, p. B2

Quais são os enigmas do momento - e que estarão, pode-se dizer, abrindo a semana? Fácil, fácil. Vamos a eles.

O primeiro é se o Copom retomará o processo de queda dos juros já na sua próxima reunião e em que proporção.

O segundo é se a Argentina se vai dar bem, afinal, apesar do imenso calote aplicado em todos os credores, inclusive nos "de dentro".

Querem saber?

Na minha opinião, meramente impressionista e não analítica, a Argentina vai se dar bem, sim. Basicamente, porque é auto-suficiente em comida e energia (petróleo). Nenhum país, governo ou empresa pode ameaçar a Argentina com qualquer represália realmente grave e insuperável. Os bancos internacionais e os credores podem dizer que não emprestam mais dinheiro. Mas isso já estão fazendo há mais de três anos, sem que a economia argentina tenha sido seriamente perturbada no período: continuou crescendo bastante - cresceu 9,2% no ano passado, quatro pontos porcentuais a mais do que a economia brasileira -, gerando empregos e acumulando reservas.

Ah, sim, os fornecedores podem interromper suas remessas ou exigir pagamento antecipado. Mas, se não fizeram isso durante o período de moratória, por que fariam agora, uma vez que as condições de adimplência da Argentina até melhoraram com a adesão de parte dos credores à "reestruturación"? Um dos grandes fornecedores da Argentina é o Brasil (cerca de um quinto das importações argentinas), que não tem nenhum interesse em interromper seus embarques, ao contrário. Outro são os EUA, que respondem por quase 30% das compras argentinas e também não interromperam nada. E quais os fornecimentos cuja interrupção seria realmente crítica para a economia da Argentina? Os de máquinas e equipamentos? Pode ser, mas para alguns poucos itens, como esses, que forem de fato supernecessários, a Argentina sempre terá recursos para pagamento antecipado, obtidos com suas exportações.

Vimos declarações na imprensa de que a moratória custou muito caro para a Argentina em termos sociais: queda do PIB e desemprego, principalmente. O próprio presidente Kirchner mencionou o grande sacrifício que o povo argentino teve de suportar. Mas esse sacrifício, esse custo social, já vinha, em grande parte, de antes da moratória. Nos últimos três anos, isto é, durante a moratória, ao contrário, houve uma grande recuperação da economia. A taxa de desemprego atual é menor que a do Brasil, onde não houve nenhuma moratória. Até porque a Argentina não precisou espremer a burra para pagar o serviço da dívida. Vai ter de fazer isso de agora em diante se quiser honrar, junto aos credores que a aceitaram, a "reestruturación" que ela própria impôs. Ainda deve cerca de US$ 125 bilhões, que representam 72% do PIB. Digamos, portanto, que o governo Kirchner teve uma grande vitória política, mas ainda está bem longe de obter uma razoável vitória econômica.

E o que parece ter sido positivo para a Argentina será positivo para o Brasil? - é a indagação inevitável.

Em primeiro lugar, lembremos que o governo argentino não escolheu fazer uma moratória. Simplesmente não teve escolha. Entrou nela porque não tinha mais dinheiro para honrar compromisso financeiro algum. O Brasil não tem nenhuma necessidade de fazer uma moratória da sua dívida. Mas pode escolher fazê-la. É uma tentação, pois sobrariam recursos (volumosos) para o governo investir no que quisesse, uma vez que o serviço da dívida pública consome muito mais do que o superávit primário.

E isso seria bom?

Como não tem necessidade de fazer a moratória, o ato seria encarado lá fora e aqui dentro como pura demagogia e agressividade injustificada do governo. Acarretaria a imediata suspensão de todos os empréstimos externos e entradas de capitais, dificultando enormemente, e sem necessidade, a administração das contas nacionais. E, como hoje em dia a maior parte da dívida do setor público é interna, e não externa, prejudicaria muito mais os credores internos (fundos de pensão, aplicações em renda fixa, bancos, pessoas físicas, etc.) do que a chamada "banca internazionale". Isso a curto prazo. A prazo médio agravaria o problema do desemprego, que já é grande, pela queda de investimentos externos e internos.

Lembremos, todavia, que o Brasil já fez isso. Uma vez, por curto prazo, no governo Sarney. Outra vez, de novo por curto prazo, no governo Collor, pois a retenção dos ativos financeiros foi uma espécie de moratória disfarçada. Nos dois casos a perturbação foi muito grande. E a economia brasileira, embora não tenha mergulhado em nenhum poço sem fundo - como profetiza a lenda criada pelos banqueiros internacionais para conjurar a tentação de moratória dos países endividados, conscientes que são de que não têm nenhuma arma eficaz contra ela, como não tiveram contra a Argentina -, ainda carrega conseqüências negativas até hoje em termos de desconfianças dos investidores internacionais.

Mas ninguém pode negar que uma redução significativa do serviço da dívida (interna e externa) seria de enorme ajuda para que o País imprimisse maior ritmo e maior segurança ao crescimento econômico. E isso pode vir a acontecer, sem trauma, de maneira negociada. Por quê?

Talvez seja hora de mencionar aqui um possível efeito não antecipado, e acho que não comentado ainda, da experiência da Argentina. Como num jogo de xadrez, a "saída Kirchner" foi audaciosa e surpreendente, mas todo enxadrista experiente sabe que isso não garante um xeque-mate a seu favor. A partir de 1.º de abril (data ironicamente apropriada) teremos melhor avaliação do estado de espírito dos financistas internacionais em relação à Argentina, quando os novos bônus começarem a ser transacionados no mercado secundário. No intervalo, o governo argentino poderá ou deverá retomar negociações com o Fundo Monetário Internacional (FMI). E o governo brasileiro estará também, neste período, em via de decidir se renova ou não o seu acordo com o FMI e em que termos.

Então, o efeito a que nos estamos referindo pode vir a ser uma reavaliação, muito discreta e silenciosa, nos meios financeiros internacionais e entre os técnicos do FMI, do Grande Medo, isto é, do pavor pânico de uma nova crise sistêmica internacional. Isso foi resultado das sucessivas crises da década de 1990, e seu filhote, a chamada "aversão ao risco", prejudicou muito os países emergentes em termos de restrições ao crédito e elevação do "risco país". A "saída Kirchner", considerada o maior calote da história, não produziu a crise sistêmica internacional que o Grande Medo prognosticava. Isso deve servir para dar maior senso de equilíbrio e de objetividade ao mercado financeiro internacional - em beneficio dos bons pagadores, principalmente.