Título: Um velho maquinista com sonhos e lembranças
Autor: Daniel Hessel Teich
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Economia, p. B8

CAÇADOR, SC - O ferroviário aposentado Zeferino Lopes de Bittencourt, de 71 anos, considera-se um homem de sorte. Sobreviveu a um derrame, a um câncer e a um acidente nas curvas da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, às margens do Rio do Peixe. Ele era o maquinista de um trem misto, carregado de carga e com passageiros, que fazia o trecho entre Videira (SC) e Marcelino Ramos (RS). No caminho percebeu um deslizamento de terra à frente. "Só deu para gritar 'tem coruja na linha', um alerta de obstáculos no trilho", recorda. "A locomotiva subiu no barranco e um dos vagões de carga que estava atrás descarrilou. Mas a manobra foi tão boa que nem mesmo derramou o vinho dos copos dos passageiros do vagão restaurante, na outra extremidade do trem."

Bittencourt começou a trabalhar na ferrovia em 1950. Na época era a Rede de Viação Paraná-Santa Catarina (RVPSC). O grupo Farquhar havia perdido os direitos sobre a ferrovia dez anos antes, quando o governo federal encampou a linha e todos os bens do multimilionário americano.

O ferroviário, que nasceu no Rio Grande do Sul, começou na profissão como turmeiro, categoria cuja responsabilidade é socar e garantir o assentamento dos trilhos da ferrovia. Depois passou para carvoeiro, o auxiliar do foguista. Foi promovido sucessivamente a foguista e maquinista.

Segundo Bittencourt, o período de ouro da ferrovia ocorreu entre 1960 e 1965. Era época das grandes composições de até cem vagões puxados por três máquinas a óleo, que carregavam de tudo, de gado a grãos e madeira. "Duas máquinas a óleo diesel puxavam até 1,8 mil toneladas. Já as de fogo, ou maria-fumaça, puxavam apenas 600 toneladas", relembra. Uma viagem de 190 quilômetros podia durar até 40 horas.

Também era a fase dos trens internacionais que vinham de Buenos Aires e Montevidéu com destino a São Paulo e Rio de Janeiro. Esse trens, lembra Bittencourt, passavam direto pelas cidades pequenas e paravam apenas nos chamados grandes centros. Receber um trem desse tipo era uma honra para as cidades.

Depois que as máquinas a diesel começaram a chegar em 1958, com a criação da Rede Ferroviária Federal, as marias-fumaça, como a Baldwin Mogul, passaram a ser usadas para manobras no grande pátio da cidade de Caçador. A decadência mesmo começou há 30 anos, quando rarearam até os onipresentes carregamentos de madeira destinados à ferrovia. Sem carga, os depósitos junto às estações começaram a ser fechados e o trem foi definitivamente substituído pelos caminhões.

Hoje Bittencourt sonha com a possibilidade de que a velha Mogul que ele pilotou volte a funcionar. Um orçamento feito pela prefeitura e pelo museu de Caçador, o responsável pela locomotiva, calcula que serão necessários pelo menos R$ 80 mil para a reforma, quantia bastante alta para os padrões da cidade. O turismo ferroviário é a única chance que as velhas locomotivas têm para um dia voltarem a funcionar.