Título: No Sul do País, outra Mad Maria
Autor: Daniel Hessel Teich
Fonte: O Estado de São Paulo, 06/03/2005, Economia, p. B8

Empresário Percival Farquhar, que construiu a ferrovia Madeira-Mamoré em Rondônia, também teve problemas em Santa Catarina CAÇADOR, SC - O principal monumento da cidade de Caçador, centro-oeste de Santa Catarina, não é um chafariz, uma estátua ou um portal grandiloqüente. O espaço mais nobre da região central, em uma ampla praça, foi reservado para uma velha locomotiva construída nos Estados Unidos em 1907. Trata-se de uma Baldwin Mogul, idêntica a outra locomotiva célebre - a Mad Maria que aparece todas as noites resfolegando na minissérie do mesmo nome, da Rede Globo. As duas locomotivas, separadas por milhares de quilômetros, são parte do mesmo delírio empresarial. Foram importadas pelo multimilionário americano Percival Farquhar para correrem por duas ferrovias, controladas por uma de suas empresas a Brazil Railway Company. A mais famosa Mad Maria foi parar na Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. A outra funcionou por quase 60 anos na Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, empreendimento menos conhecido, mas não menos ousado do empresário.

Farquhar, dono de um império de ferrovias, empresas de distribuição de energia, portos, companhias de telégrafo e uma vastidão de terras, ganhou a concessão para terminar a ferrovia São Paulo-Rio Grande em 1908. As obras começaram em 1897, partindo da cidade de Itararé, em São Paulo, rumo sul. Em 1905, a construção empacou à beira do Rio Iguaçu, no Paraná, depois de vencidos 264 quilômetros.

Em 1907, outros 50 quilômetros foram construídos a partir do rio, nas terras que atualmente pertencem a Santa Catarina. Nova parada na obra. No ano seguinte, o governo federal decidiu repassar a concessão que pertencia à Companhia São Paulo-Rio Grande para o grupo empresarial de Farquhar. O empresário tinha o prazo de dois anos para avançar com a estrada por 320 quilômetros de mata fechada e chegar até a margem oposta do Rio Uruguai, já no Rio Grande do Sul.

Assim como a sua correlata amazônica, a São Paulo-Rio Grande é hoje uma estrada obsoleta e está praticamente abandonada. Foi substituída pelas rodovias e outras ferrovias mais novas.

A antiga São Paulo-Rio Grande é parte da malha da América Latina Logística (ALL), empresa que há oito anos controla 6 mil quilômetros de ferrovias no Sul do País, além de empresas na Argentina e no Uruguai. Esporadicamente máquinas de manutenção percorrem seus trilhos entre Porto União (SC), e Marcelino Ramos (RS), mas o estado da via é tão precário que muitas vezes a velocidade não ultrapassa os 6 km por hora.

No Paraná, o trecho entre União da Vitória e Engenheiro Gutierrez foi erradicado já nos tempos em que a ferrovia ainda era parte da malha sul da estatal Rede Ferroviária Federal. A ponte ferroviária sobre o Rio Iguaçu, entre Porto União (SC) e União da Vitória (PR), teve os trilhos arrancados, foi asfaltada e dá passagem a carros, pedestres e bicicletas.

"Quando assumimos a ferrovia, o trecho já era 100% inviável. Fizemos estudos e não há demanda para carga nessa área", explica Pedro Roberto Oliveira, diretor de Relações Corporativas da ALL. Segundo ele, a ligação do Paraná com o Rio Grande do Sul, um dos quatro corredores mais importantes da malha, é feita por meio de uma linha mais nova, que passa a leste da velha ferrovia e tem traçado menos sinuoso.

RITMO ALUCINADO

Para realizar a obra no início do século 20, a Brazil Railway Company recrutou 8 mil homens. A maioria era brasileira, vinda de Santos (SP), do Rio de Janeiro, Vitória (ES), Porto Alegre e Rio Grande (RS). Estrangeiros eram poucos, basicamente americanos, ucranianos e poloneses.

"Eles usaram picaretas, enxadas, dinamite e carrinhos de mão para erguer a linha, bastante sinuosa, que acompanhava o Rio do Peixe", explica o historiador Nilson Thomé, autor do livro Trem de Ferro, em que conta a história da ferrovia. Cada quilômetro custou 80 contos de réis, equivalente a US$ 25 mil na época. Em dinheiro de hoje, seria algo em torno de US$ 440 mil. O custo total da estrada foi três vezes maior que o estimado.

O ambiente não era tão hostil como na Amazônia, com suas doenças e calor infernal, mas as condições de trabalho estavam longe de serem razoáveis. A região era coberta por uma mata densa. O ritmo da obra era alucinante e assentava-se 516 metros de trilhos por dia, pois o governo federal foi duro na negociação de prazos ao liberar a concessão para Farquhar.

A empresa mantinha um exército próprio de seguranças, que puniam com rigor os deslizes dos funcionários. Na época das chuvas, tinha-se que enfrentar as cheias dos rios e eram comuns descarrilhamentos dos trens. Durante o inverno, os trabalhadores enfrentavam temperaturas abaixo de zero.

Muitas vezes, todo o trabalho tinha de ser refeito. Em maio de 1911, com a estrada já inaugurada, uma enchente levou a ponte sobre o Rio Uruguai e cortou a ligação com o Rio Grande do Sul. Uma nova ponte, agora de aço, foi importada da Europa.

Com a ferrovia ainda em obras, ocorreu o primeiro assalto a um trem pagador no Brasil, próximo à cidade de Pinheiro Preto (SC). Foram levados 300 contos de réis, uma fortuna na época.

Uma vez no Rio Grande do Sul, a São Paulo-Rio Grande foi conectada à rede da Compagnie Auxiliaire des Chémins de Fer au Brésil, também propriedade de Farquhar.

Concluída a ligação, começava uma nova etapa no império Farquhar, a da exploração das terras ao redor da linha de trem, um benefício da concessão. Era um território de mais de 15 mil km2, dos quais 6,6 mil km2 estavam na área conhecida como Contestado, disputada por Paraná e Santa Catarina.

Essa região era ocupada por milhares de posseiros, muitos deles ex-funcionários das obras da ferrovia. Foram expulsos para dar lugar aos projetos de colonização de Farquhar. O conflito virou uma sangrenta revolta, a Guerra do Contestado, em que morreram mais de 10 mil pessoas entre 1912 e 1916.

No Sul, a ferrovia de Farquhar não provocou a mortandade de operários que aconteceu na Madeira-Mamoré. Mas sua construção deu origem a outra tragédia: uma das maiores carnificinas da República do Brasil.