Título: Brasil improdutivo? Qual dos Brasis?
Autor: Rolf Kuntz
Fonte: O Estado de São Paulo, 10/03/2005, Economia, p. B2

Torcer o nariz era reação típica de velhos marxistas quando se falava em dualidade da economia brasileira. Falar de uma economia dual, contrastando o moderno e o antigo, o mais e o menos desenvolvido, o mais e o menos marcado pelos valores da sociedade urbana e industrial, era um grave pecado intelectual: era impossível, por esse caminho, uma análise realista do capitalismo brasileiro e de seus conflitos estruturais. No mínimo, a linguagem dualista era sinal de uma visão prejudicada por uma ideologia conservadora. Um livro como Os Dois Brasis, de Jacques Lambert, poderia até ser parte da Brasiliana, mas não era algo que se pudesse levar a sério. É difícil, no entanto, resistir à tentação de cair no dualismo quando se lê o boletim distribuído ontem pela Sobeet, a Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica. Segundo o boletim, os brasileiros são menos produtivos que argentinos, chilenos e mexicanos, tão improdutivos quanto russos, turcos e tailandeses e muito mais produtivos que indianos e chineses. Essa escala simplesmente reflete uma comparação entre os valores per capita do que se produz nesses países.

Em 2003, o produto interno bruto (PIB) por habitante, no Brasil, correspondeu a míseros US$ 2,79 mil. No mesmo ano, o PIB per capita equivaleu a US$ 3,65 mil na Argentina, US$ 4,39 mil no México, US$ 2,19 mil na Tailândia, US$ 2,61 mil na Rússia, US$ 1,1 mil na China e US$ 530 na Índia.

Comparar produtos per capita medidos em dólares correntes pode ser um exercício útil para muitos propósitos. Mas que informação proporciona sobre produtividade? Para começar, PIB expresso em dólares correntes é uma informação muito pobre sob vários aspectos. Em muitos casos, reflete uma evidente subestimação da atividade econômica, por causa das diferenças internacionais de custos de vários componentes do consumo.

Esta é uma boa justificativa para as medidas baseadas na paridade do poder de compra. Este critério também é defeituoso, mas ajuda a explicar por que certas populações sobrevivem, contra as evidências das estatísticas baseadas no câmbio corrente. Mesmo sem essa discussão, no entanto, a pergunta permanece: de que produtividade se trata?

É claro que as criancinhas produzem pouco e isso se reflete no PIB per capita de um país com pirâmide populacional de base muito larga. Esse é um primeiro ponto. Em segundo lugar, é notável que só um dos países mais produtivos dessa lista, o México, seja um grande exportador. Além disso, quem dirá que a indústria brasileira é menos eficiente que a argentina? O crescimento das exportações brasileiras não resultou de subsídios, porque o governo não tem dinheiro para isso, nem da exploração exaustiva da mão-de-obra barata, porque muitos competidores têm custos trabalhistas menores.

Mesmo a China, que opera com preços e custos pouco transparentes, tem salários muito baixos e ainda exibe um enorme intervencionismo estatal, tem baseado boa parte de seu sucesso comercial na modernização tecnológica e na diversificação de seus produtos.

A pouco produtiva economia brasileira tem-se mostrado altamente competitiva em setores como o siderúrgico, o têxtil, o do agronegócio, o aeronáutico e o de equipamentos mecânicos. O País tem avançado mais lentamente do que outros na tecnologia de informação e comunicação, mas seu desempenho nesse campo é melhor que o de quase todos os países latino-americanos.

O que o PIB per capita revela não é a baixa produtividade de toda a indústria brasileira nem a do agronegócio. Este é um dos mais competitivos em diversos tipos de produção e vários segmentos da indústria vêm revelando notável dinamismo. O que o PIB per capita mostra, tanto quanto outras médias nacionais, é a enorme disparidade entre as populações incluídas e as não incluídas na economia moderna. Isso vale para a China e para a Índia.

Mais que um problema econômico, é um enorme desafio político. Não se vencerá esse desafio contendo a modernização da indústria, freando o agronegócio, impedindo a mudança tecnológica e impondo barreiras ao avanço das áreas mais desenvolvidas. A inclusão das populações atoladas no atraso - é preciso empregar as palavras sem medo - só será possível com o uso mais esperto e socialmente mais produtivo dos recursos públicos e com a adoção de políticas internas e externas que estimulem o investimento.

Se o Brasil vacilar, ficará para trás, porque outros não vacilarão. O Brasil moderno perderá o passo e não haverá recursos para a inclusão do Brasil atrasado. Neste jogo, não se pode pedir tempo para reorganizar o time.