Título: Novo abuso do Fisco
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2005, Editoriais, p. A3

Depois de ter aproveitado a Medida Provisória 232, que trata da correção das alíquotas do Imposto de Renda das pessoas físicas para elevar em 25% a base de cálculo da carga tributária dos prestadores de serviço, o governo voltou a usar o mesmo expediente ao elaborar a Lei Complementar 118, que está em vigor desde o último dia 9, cujo objetivo original era adaptar o Código Tributário Nacional (CTN), editado há 40 anos, à nova Lei de Falências, concebida para viabilizar a recuperação de empresas insolventes. Mas, com mão de gato, as autoridades fiscais embutiram na lei complementar um dispositivo que nada tem a ver com a matéria. "Para efeito de interpretação do inciso I do art. 168 da Lei n.º 5.172 (CTN)", diz ele, "a extinção do crédito tributário ocorre, no caso de tributo sujeito a lançamento por homologação, no momento do pagamento antecipado de que trata o @ 1.º do art. 150 da referida Lei." Na prática, esse palavreado hermético altera a data de início da contagem de tempo para prescrição da compensação ou recuperação de tributos pagos a mais, o que reduz de dez para cinco anos o prazo para o exercício desse direito.

Como atinge os tributos que os declarantes calculam e recolhem, a mudança abarca os principais impostos e contribuições pagos pelas empresas. Além disso, a alteração dificulta a compensação ou a recuperação de tributos declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, como o antigo Imposto sobre Lucro Líquido. Quem ganha com essa esperteza é a Receita, pois a redução de prazo reduzirá o volume de tributos em compensação nos processos judiciais e administrativos em tramitação. Assim, mais uma vez as regras são mudadas com o jogo em andamento.

Uma das justificativas das autoridades tributárias é que, no Superior Tribunal de Justiça, alguns ministros viriam reconhecendo o prazo de cinco anos. A posição dominante entre os 33 magistrados da corte, porém, sempre foi favorável ao prazo de dez anos. Tanto que, antes da edição da Lei Complementar 118, a Fazenda Nacional vinha estudando meios judiciais para mudar a jurisprudência.

Por isso, o expediente usado pela Receita para saciar a sua sanha fiscal, introduzindo na Lei Complementar 118 um dispositivo que nada tem a ver com sua finalidade, representa uma violência contra o Judiciário. É mais uma perigosa afronta ao princípio constitucional da separação dos Poderes e ao próprio estado de direito.

O mais preocupante é a velocidade com que os direitos vão sendo violentados por essa prática imoral. Há seis meses, a Procuradoria da Fazenda Nacional já havia modificado as regras de funcionamento do Conselho de Contribuintes, por meio de um parecer que conferiu aos seus advogados a prerrogativa de recorrer judicialmente das decisões desse órgão contra os interesses da União. E, baixada no penúltimo dia de 2004, a MP 232 restringiu os tipos e valores de litígios que podem ser levados à sua apreciação.

Por ironia, a Receita é um órgão vinculado ao Ministério da Fazenda, o mesmo que, em dezembro, publicou um relatório de 103 páginas no qual enfatizava a importância da melhoria da qualidade da tributação, do aprimoramento da elaboração das leis e da segurança jurídica, para atrair investimentos. "A capacidade de crescimento econômico sustentável a longo prazo é limitada pelas dificuldades burocráticas e os custos não monetários para a produção, geração de empregos e investimento. Por essa razão, o governo tem estudado medidas para melhorar o ambiente de negócios, de forma a ampliar a concorrência, reduzir custos de transação e fomentar o empreendedorismo", diz o texto na pág. 87 (grifos nossos).

Essa afirmação é desmentida na prática pelas artimanhas da Receita. Por esvaziar os direitos dos contribuintes, aumentar a irracionalidade do sistema tributário e multiplicar as dificuldades burocráticas que cidadãos e empresas têm de enfrentar, a mão de gato das autoridades tributárias tanto na MP 232 quanto na Lei Complementar 118 simboliza tudo aquilo que o próprio Ministério da Fazenda critica em seu relatório. O que essa contradição revela é que o ministério responsável pelo diagnóstico dos obstáculos ao nosso crescimento é o mesmo que tem, em seu segundo escalão, um órgão empenhado em criar novos obstáculos.

Já era tempo de as autoridades econômicas colocarem em prática o que pregam em discurso.