Título: Marta criou cotas para credores
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Fonte: O Estado de São Paulo, 14/04/2005, Metrópole, p. C1

Logo depois do primeiro turno das eleições, Prefeitura mudou software para barrar liquidações de empenhos

Em 13 de outubro, dez dias depois do primeiro turno das eleições - quando Marta Suplicy (PT) apareceu oito pontos porcentuais atrás de José Serra (PSDB) -, houve uma reunião na Secretaria de Finanças e Desenvolvimento Econômico. O objetivo do encontro, segundo a ata obtida pelo Estado, era mudar o programa de computador usado para pagar os credores da Prefeitura, barrando a liquidação dos empenhos que ultrapassassem uma cota estabelecida para cada secretaria. A liquidação de empenhos é uma medida necessária para liberar o pagamento aos credores. Com a alteração, o programa Novo Serviço de Execução Orçamentária (NovoSeo) deveria mostrar na tela "Cota financeira/liquidação excedida". Mesmo que o serviço tivesse sido efetivamente prestado, o empenho não poderia ser liquidado. Estava criado o "software do calote", segundo especialistas em administração. Para a mudança ser feita, o NovoSeo ficou fora do ar entre os dias 11 e 17 de outubro.

Normalmente, a Prefeitura respeita três procedimentos para quitar seus contratos. Primeiro, registra no sistema o empenho da verba, fazendo uma espécie de reserva de recursos no orçamento que serve de garantia ao fornecedor de que a despesa vai ser paga. Depois disso, e após o serviço ter sido realizado, a administração verifica o trabalho, confirma o valor a ser pago e liquida a despesa. Finalmente, o pagamento é feito pela Secretaria de Finanças. Como o bloqueio no NovoSeo atingia a fase de liquidação, o pagamento precisava do aval da secretaria para ser efetivado.

Em 28 de dezembro, três dias antes de deixar o cargo, a prefeita publicou um decreto cancelando empenhos - as tais reservas de verbas no orçamento - que somavam R$ 578 milhões. Isso só pôde ser feito porque as liquidações haviam sido bloqueadas.

Com isso, a Prefeitura conseguiu que a dívida pelos serviços prestados não constasse no balanço final da gestão. Dando o calote, mas não deixando restos a pagar na contabilidade para o próximo prefeito, escapava da Lei de Responsabilidade Fiscal e da Lei de Crimes Fiscais (Veja explicações ao lado).

Para explicar o decreto que cancelou os empenhos, Marta disse que o bloqueio só havia atingido os serviços que não tiveram a realização comprovada. No dia 18 de março, no entanto, o Estado mostrou que foram cancelados inclusive os empenhos de serviços reconhecidos e aprovados pela Prefeitura e que, por conseguinte, deveriam ter sido liquidados e pagos.

O empresário Francisco José Ruggero, de 61 anos, por exemplo, dono da empresa Servtécnica, que aluga máquinas de copiar para a Prefeitura, teve R$ 112 mil de empenhos cancelados. Os serviços haviam sido prestados, como comprovaram as avaliações feitas pela Prefeitura e mostradas pelo Estado.

"Por tudo o que aconteceu, pela quantidade de credores que fizeram serviços e não foram pagos, podemos dizer que a Prefeitura criou um software do calote", afirma o advogado Floriano de Azevedo Marques, professor de direito administrativo da Universidade de São Paulo (USP).

REDUÇÃO

Os benefícios dessa mudança para a Prefeitura ficam evidentes nos dados do programa de limpeza urbana. Entre janeiro e setembro do ano passado, a Secretaria de Serviços e Obras liquidou ou deu a ordem para o pagamento de R$ 47,7 milhões, em média, por mês. De outubro a dezembro, depois da reunião que definiu as alterações, essa média mensal despencou para R$ 2,2 milhões.

O decreto da Prefeitura de 28 de dezembro cancelou R$ 226,1 milhões em empenhos (reservas no orçamento) não liquidados referentes aos serviços de limpeza urbana. Como as 12 mil toneladas diárias de lixo não estavam nas ruas da capital, pode-se afirmar que a Prefeitura cancelou serviços que ela sabia que tinham sido prestados. O Sindicato das Empresas de Limpeza Urbana está cobrando o dinheiro atrasado da atual gestão.

O Estado tentou entrevistar o ex-secretário de Finanças Luís Carlos Fernandes Afonso, desde sexta-feira. Afonso afirmou estar com a agenda ocupada e explicou o episódio por intermédio de sua Assessoria de Imprensa. A assessoria negou que a cota de despesas definida para cada secretaria impedisse a liquidação de empenhos de forma arbitrária.

Justificou, ainda, que as mudanças feitas no software foram o "instrumento de uma boa execução orçamentária". Como o ano se aproximava do encerramento, explicou a assessoria, as regras foram estabelecidas para orientar as secretarias sobre os gastos. Quando as pastas se aproximavam do limite de despesas, sabiam estar impedidas de lançar novos empenhos, informa.

Ainda segundo a assessoria do ex-secretário, caso alguma secretaria precisasse liquidar o empenho e aparecesse na tela de computador que a cota havia sido "excedida", a situação podia ser explicada para a Secretaria de Finanças, que liberava a liquidação do empenho para que o pagamento pudesse ser feito.