Título: Ainda os carrões do STJ
Autor: Roberto Macedo
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/04/2005, Espaço Aberto, p. A2

Volto a tema já abordado (em 17 e 24 de fevereiro), a notícia de que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) destinou R$ 5,42 milhões para renovar os carros de uso dos seus ministros, adquirindo, ao custo individual de R$ 146,5 mil, 37 autos do modelo Ômega, da General Motors (GM), fabricados na Austrália. Sem questionar a necessidade e o tamanho da frota, defendi no primeiro artigo a aquisição de automóveis nacionais (inclusive da própria GM), cujos modelos mais caros têm preço próximo da metade do de um Ômega australiano.

No diálogo que se seguiu com leitores, soube de legislação que restringe a aquisição de carros de luxo pelo governo federal. Assim, no segundo artigo me referi à Lei n.º 1.081, de 13/8/1950, cujo artigo 6.º diz: "Os automóveis destinados ao serviço público federal (...) serão dos tipos mais econômicos e não se permitirá a aquisição de carros de luxo, salvo na hipótese dos (...) destinados à Presidência e Vice-Presidência da República, Presidência do Senado Federal, Presidência da Câmara da Deputados, Presidência do Supremo Tribunal Federal e Ministro de Estado." O artigo 14 da mesma lei prevê penalidades para os infratores, nos termos do estatuto que rege os servidores públicos.

Retorno ao assunto por uma mesmice e duas novidades posteriores aos meus artigos. A mesmice é que tudo fica por isso mesmo. Não acontece nada, nem mesmo uma tentativa de defender a legalidade da aquisição (pode ser que exista outra legislação autorizando-a), tudo indicando que já foi consumada. Alguns leitores mais afetos a questões jurídicas informaram que a apuração de eventual irregularidade seria de alçada do Ministério Público, enquanto outros apontaram o Tribunal de Contas. Aliás, um leitor protocolou uma reclamação perante a Ouvidoria desse tribunal. Entretanto, sonhando ser desmentido pelos fatos, não espero nenhuma providência corretiva, pois continuamos no limbo institucional em matéria de controle próprio ou externo do Judiciário.

As novidades somam-se às evidências do mau estado em que se encontra a nossa República, pois seu propósito de servir ao bem comum é desprezado até mesmo nos seus escalões mais altos. Uma delas foi notícia estampada na Folha de S.Paulo de terça-feira, juntamente com ilustrativa fotografia, dando conta de que um dos Ômegas que servem ao STJ foi flagrado no dia anterior quando era usado por seu motorista (servidor do mesmo tribunal) para comprar e carregar materiais para a reforma do apartamento de um de seus juízes, a ministra Fátima Nancy Andrighi. Igualmente chocantes foram as declarações dessa ministra e de sua empregada doméstica A primeira disse que, "desde que não use o carro do tribunal, o motorista pode dar uma ajuda" em assuntos domésticos. Já a empregada declarou à reportagem que o motorista e o carro geralmente ficam à disposição da casa.

E a regra do "uso exclusivo em serviço" como fica? Supondo que os ministros dediquem seu tempo de trabalho a examinar e decidir processos, fica claro que o próprio tamanho e utilidade da frota devem ser questionados. Ademais, como os carros ficam disponíveis enquanto os juízes trabalham nos seus cargos, vale lembrar uma lei econômica, segundo a qual a disponibilidade de bens ou serviços gera demanda por eles, nas suas várias utilidades. Assim, retifico outra avaliação inicial: não seria preciso nem mesmo gastar metade de um Ômega australiano para cada ministro, pois no caso citado houve a preferência revelada pelos serviços de uma Kombi.

Outra novidade foram as declarações do presidente do STJ, ministro Edson Vidigal, em entrevista ao jornalista Fausto Macedo (nestes tempos de nepotismo, esclareço que não é meu parente), publicada neste jornal no dia 7 deste mês. Entre outras coisas, disse ele: "O momento do País é inoportuno para qualquer agenda que trate de privilégios, vantagens ou quaisquer outras coisas de natureza pessoal. (...) Tudo o que soa como privilégio pega muito mal. Os juízes têm que compreender que são servidores públicos iguais a quaisquer outros empregados de um mesmo patrão, o povo brasileiro."

Tudo muito bonito e republicanamente correto. Só falta demonstrar a coerência desses princípios com a aquisição dessa enorme e caríssima frota de carros.

Com seu novo avião, o presidente Lula deu um péssimo exemplo de gastos elevados e desnecessários para sustentar a logística do cargo. Nossa Lei de Responsabilidade Fiscal, contudo, não tem malhas para impedir suntuosidades desse tipo, com o que há a irresponsabilidade ilegal e a legal. O presidente, contudo, pelo menos sofrerá o julgamento político quando enfrentar novamente as urnas.

De uma corte como o STJ, com seus meritíssimos juízes de carreira, era de esperar que bons exemplos fossem a norma, e não apenas objeto de discursos vazios. Aí o dano é mais grave, pois atinge a instituição, ao pôr em dúvida a justeza das decisões de seus ministros. Se numa questão tão simples como essa, de adquirir uma nova frota de carros, em que, independentemente de disposições legais, o certo e o errado são tão claramente discerníveis e o caminho equivocado foi escolhido, pode-se temer que também não ocorram decisões efetivamente judiciosas no exame de questões muitíssimo mais complexas.

Para nós, economistas, em particular quem não é familiarizado com as instituições do Estado brasileiro e com as práticas de seus ocupantes, questões como essas servem de lição para os ingênuos que vivem a propor a contenção ou mesmo a redução dos gastos públicos do País. Sem sair desse o que fazer para avançar no como fazer, propostas desse tipo são palavras ao vento, tal como as sopradas por gente do governo, nos seus três Poderes.