Título: A cigarra dança
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Fonte: O Estado de São Paulo, 14/04/2005, Notas & Informações, p. A3

A o acadêmico, garboso no seu fardão bordado em ouro que ia no banco de trás de seu carro rumo à Academia Brasileira de Letras, o taxista perguntou, extasiado: "Sois rei?" Aos jornalistas que o acompanharam a Gana, enrolado num manto bordado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva perguntou: "Estou com cara de rei?" Na primeira anedota, não se sabe se o motorista conduziu o acadêmico, são e salvo, até seu destino. Na segunda, o bom humor presidencial e a disposição de alguns membros de sua comitiva, como o chanceler Celso Amorim, de bailar ao som de batuques foram os pontos culminantes de mais um périplo africano, o terceiro, feito pelo presidente Lula. O objetivo dessa viagem era dinamizar o comércio do Brasil com cinco países africanos. Nunca se viu, no entanto, na história recente do Itamaraty, uma missão presidencial mais mal preparada que essa. A exasperação do ministro Luiz Fernando Furlan, na Nigéria, bem mostra o que se passou. Os funcionários que prepararam a visita não forneceram ao ministro do Desenvolvimento a lista de restrições que a Nigéria faz aos produtos brasileiros, o que limitava a possibilidade de negociar a ampliação do comércio. O interlocutor do ministro era um funcionário subalterno. Mas o pior é que na comitiva presidencial não havia mais que uma dezena de empresários - e sem eles não se promovem negócios. Numa missão como essa, em que cinco capitais são visitadas em poucos dias, as dificuldades de locomoção só são superadas se os empresários forem incorporados à comitiva. O presidente Lula, no entanto, preferiu levar outras pessoas - entre elas a ex-ministra Benedita da Silva -, deixando para trás quem poderia avaliar oportunidades e fechar negócios. Restou a promessa de, no segundo semestre, emprestar um avião velho - o Sucatão - para transportar uma missão empresarial.

Nesse périplo africano, de tão pobres resultados objetivos, o que não faltou foi uma farta contribuição do presidente Lula para a Enciclopédia de Platitudes que são os seus discursos e entrevistas. O conselheiro Acácio até poderia dizer que "precisamos tirar ensinamentos de coisas boas que nos acontecem e aperfeiçoá-las e não permitir que as coisas ruins voltem a acontecer", mas certamente o pudor o impediria de afirmar que "a relação comercial pode ser infinitamente maior, a relação cultural pode ser infinitamente maior e a nossa relação política pode ser infinitamente maior". Ficou o consolo de saber que o presidente Lula começa a se render a algumas realidades que antes negava: "Nem a evolução da biotecnologia garantiu a distribuição de alimentos para toda a humanidade e, possivelmente, o problema da fome não seja por falta de alimentos, mas por falta de renda."

Fazendo a apologia da diplomacia presidencial - ou seja, de suas seguidas viagens ao exterior -, o presidente Lula saiu-se com outra: "Política é olho no olho. É, como diria o povo brasileiro, tête-à-tête (...) Temos que viajar o mundo para vender e é isso o que estamos fazendo."

Não é. Na tentativa de promover a mudança megalômana da geografia comercial do mundo, o governo brasileiro tem se dedicado principalmente à arte da retórica e ao cultivo de antiquados esquemas de equilíbrio de poder que lembram os piores dias do terceiro-mundismo. Com a China e a Índia, dois dos pontos de apoio do Itamaraty para a transformação da realidade mundial, além de discursos foram feitos uns poucos acordos que não resultaram em negócios substanciais. Pois esses dois países, enquanto o presidente Lula se vestia de rei, celebraram um acordo que duplicará o comércio bilateral em cinco anos, atingindo US$ 30 bilhões em 2010. Pequim e Nova Délhi não estão preocupados em propagar a ideologia da nova conformação mundial do comércio. Seus políticos buscam criar molduras jurídicas e infra-estrutura física que favoreçam a produção e o emprego. Seus diplomatas são funcionários pragmáticos que se ocupam em criar as condições para o crescimento do comércio e, portanto, das economias nacionais. Jamais, em seus contatos, eles perdem tempo com coreografias folclóricas.

É o que fazem, também, os chamados tigres asiáticos. Reservas, obtidas pela abertura comercial e financeira, no valor de US$ 205 bilhões na Coréia do Sul; de US$ 247 bilhões em Taiwan; e exportações combinadas desses dois países, mais Cingapura, Malásia e Tailândia, no valor de US$ 750 bilhões anuais, mostram o acerto de suas políticas. Eles criam ambientes propícios aos negócios e não perdem tempo com blablablá. Enquanto isso, a cigarra dança.