Título: Golpe no México
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Fonte: O Estado de São Paulo, 14/04/2005, Notas & Informações, p. A3

A lei é igual para todos? No México, às vezes é. Se os transgressores da lei estão ligados ao Partido da Ação Nacional (PAN) do presidente Vicente Fox, ou ao Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o país em regime de partido único durante 71 anos e hoje controla o Congresso, as probabilidades de que o rigor da lei sobre eles recaia são remotas. Mas quando se trata do membro de um partido menor, o Partido da Revolução Democrática (PRD), mas que lidera, nas pesquisas de opinião pública, a corrida pela sucessão presidencial, a lei é implacável. O prefeito da Cidade do México, Andrés Manuel López Obrador, há cerca de um ano, desrespeitou decisão judicial que o impedia de construir um acesso a um hospital em terras cuja propriedade era contestada. Tendo em vista as acusações de corrupção e violência que pesam sobre altos hierarcas do PAN e do PRI, que o presidente Fox se recusa a mandar processar, o delito cometido por Obrador não passaria de um pecado venial. Mas, como ele é a maior ameaça aos planos eleitorais do PAN e do PRI, os dois partidos uniram forças e aprovaram, na Câmara dos Deputados, o "desaufero", ou seja, destituíram-no da imunidade que o impedia de ser processado. Isso, no México, equivale a uma sentença de inelegibilidade, pois a legislação local impede a candidatura de qualquer réu, ao contrário da brasileira, que só atinge o condenado com sentença transitada em julgado.

O presidente Vicente Fox alega que Obrador não está acima da lei. Mas 78% das pessoas consultadas em pesquisas de opinião respondem que o que está em jogo não é o império da lei, e sim as conveniências políticas de dois grandes partidos, que querem se livrar de um oponente ameaçador. Na sexta-feira passada, cerca de 200 mil pessoas se reuniram no Zócalo, a principal praça da Cidade do México, para protestar contra a manobra coonestada pela Câmara dos Deputados. Os jornais mexicanos - e agora os norte-americanos e ingleses - estampam artigos da intelectualidade local, denunciando o caso como uma tentativa de sufocar a democracia.

Estranho paradoxo. Vicente Fox, há cinco anos, conseguiu quebrar 71 anos de hegemonia do PRI, uma ditadura de partido único que só encontrou rival em longevidade na do Partido Comunista da União Soviética. O PRI se manteve por tanto tempo no poder não apenas porque controlava a máquina do Estado e exercia influência decisiva sobre as decisões da iniciativa privada - na verdade, um apêndice do poder público -, mas também porque, pela corrupção e pela violência, mantinha os partidos rivais - cuja existência permitia para efeitos externos, ou seja, para certificar que no México funcionava uma democracia pluripartidária - em vida vegetativa. Já esgotada a paciência dos mexicanos com o regime do PRI, o partido ainda ganhou sobrevida quando, nas eleições de 1988, o candidato Cuauhtémoc Cárdenas foi tungado nas urnas. Cárdenas pertencia ao Partido da Revolução Democrática, o mesmo de Obrador. A diferença do que ocorreu com Cárdenas, em 1988, e com Obrador, em 2005, é a sofisticação dos métodos. O primeiro teve sua eleição roubada numa grosseira manipulação de números. O segundo está sendo vítima de uma manobra parlamentar e jurídica.

Andrés Manuel López Obrador não é um exemplo de político moderno. Trata-se de um demagogo populista, que defende a nacionalização dos meios de produção, crê que os recursos do Estado são inesgotáveis e sempre teve declarada simpatia pelas manifestações populares violentas. Justamente por ser alguém capaz de pôr a perder os avanços econômicos obtidos pelo México nos últimos anos - e também porque promete acabar com privilégios e punir corruptos - é que está sendo francamente hostilizado pelo PAN e pelo PRI.

Essa disputa está dividindo o México. O presidente Vicente Fox, que há cinco anos era o herói que havia redemocratizado o país, hoje é tido pela maioria da opinião pública como um autocrata que mantém, com mão de ferro, uma situação política e institucional que prometia reformar. E Obrador, por estar sendo vítima dos métodos por tanto tempo usados pelo PRI, ganha a simpatia popular, apesar de suas claras deficiências para administrar um país com uma economia tão dinâmica como a do México. A população quer escolher pelo voto os seus dirigentes e repudia as manobras de gabinete. A maioria dos mexicanos vê, no atual quadro político, uma ameaça à sobrevivência da democracia, tão recentemente conquistada.