Título: Nunca se pensou MDL como cornucópia
Autor: Luiz Gylvan Meira Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/02/2005, Vida&, p. A15

Para Luiz Gylvan Meira Filho, um dos articuladores do acordo, apenas Kyoto não vai resolver as questões climáticas

Como um pai zeloso, Luiz Gylvan Meira Filho observa com um olho o Protocolo de Kyoto entrar em vigor enquanto, com o outro, vê o futuro do tratado. O engenheiro elétrico, formado no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA) em 1964, foi um dos principais articuladores do texto do acordo internacional. Também é um dos proponentes, na equipe de negociadores brasileiros, do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), sistema que permite a países industrializados alcançarem suas metas de redução de emissões por meio do financiamento de projetos "limpos" nos países em desenvolvimento. Ex-presidente da Agência Espacial Brasileira, ex-secretário do Ministério de Ciência e Tecnologia e atual colaborador do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), Gylvan não hesita em dizer que as mudanças climáticas já são uma realidade e Kyoto não é suficiente. "Todo mundo sabe que o problema é de longo prazo."

O senhor concorda com as críticas de que o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo não renderá tantos dividendos ao Brasil como se pensava quando proposto?

Nunca se achou que o MDL fosse uma cornucópia de dinheiro, nem por parte do grupo proponente, nem do pessoal da iniciativa privada que mexe com isso, como o setor florestal. O que o MDL faz é permitir que as leis do mercado funcionem: uma parte dos custos é coberta, o que ajuda a tornar o bom negócio viável, e aí todo mundo ganha. Concordo que algumas pessoas podem ter achado que seria bastante lucrativo lidar com MDL. O Brasil tem vantagens competitivas naturais, mas não é uma verdade universal que reduzir as emissões no País sai mais barato do que reduzir na Alemanha ou no Japão. Se, por exemplo, há investimento em uma máquina que pode muito bem ser operada lá fora com um custo menor, ela não vai ser enviada para cá. Além disso, quando uma tecnologia poluente é substituída por outra limpa, há um custo alto envolvido na transição. Ele se dilui em longo prazo, é verdade, mas existe.

O Protocolo de Kyoto se transformou em um tratado pro forma, um documento político ou ainda tem um viés ambiental?

Todos os tratados, por definição, são políticos. Não atribuo nenhuma conotação negativa à palavra "política". Governos existem para fazer políticas públicas. O protocolo é um acordo não apenas entre dois países, mas entre vários. Quanto ao viés, defina ambiental. Digo isso pois há diferentes objetivos incutidos nesta palavra. Às vezes, perseguir um objetivo ambiental fere outro e Kyoto não existe para cumprir todos. Ele é restrito ao aspecto político e visa a questão de mudança do clima. Quem tem de observar os outros objetivos ambientais é o governo. E não é pro forma: há metas claras de redução das emissões de gases para os participantes.

A discussão sobre o período pós-Kyoto, a partir de 2013, está mais quente do que a conversa sobre o protocolo em si?

Sob o aspecto de debate, a negociação sobre Kyoto acabou. Agora os países têm de cumprir suas metas, o que é outro problema. O último trecho indefinido do protocolo foi resolvido em dezembro na COP-10 (Conferência das Partes da Convenção da ONU sobre Clima), que era a questão das florestas. Passamos então para a próxima negociação. Todo mundo sabe que o problema da mudança climática é de longo prazo e que apenas Kyoto não vai resolvê-lo.

Por três dias, no início de fevereiro, cerca de 200 cientistas se reuniram na Inglaterra para discutir as mudanças climáticas. Qual conclusão foi tirada?

Fechamos um relatório com o resumo das apresentações feitas pelos participantes, redigido cuidadosamente pelo comitê científico, do qual fiz parte. Há conclusões que se destacam: a adaptação às mudanças climáticas, exceto em alguns casos, é impossível. O limiar para romper a circulação termohalina (fluxo das águas quentes na superfície do oceano para o norte, onde se resfriam e fluem para o sul em profundidade; o movimento tem grande influência no sistema climático) é mais baixo do que se imaginava, o que coloca a previsão de quebra neste século. E, para evitar mudanças climáticas tão intensas, não são necessárias soluções miraculosas, mas a aplicação nos próximos 10 a 20 anos de tecnologias conhecidas. Basta querer.

A reunião foi científica, porém convocada por um político, o premiê britânico Tony Blair, para tratar do artigo 2 da Convenção sobre Mudança do Clima, que discorre sobre estabilização das concentrações de gases. É possível separar a discussão científica da política?

O método de raciocínio é diferente. A ciência tem de se manter fria. Durante a reunião, combinamos nos manter completamente fora da discussão sobre o Protocolo de Kyoto, sem emitir opiniões ou abrir a boca sobre culpa diplomática. Claro que à noite, com uma cerveja na mão, cada um fala o que quiser. Mas o acordo funcionou.