Título: Na Europa, secretária vira a Bette Davis da diplomacia
Autor: Timothy Garton Ash
Fonte: O Estado de São Paulo, 13/02/2005, Internacional, p. A22

Líderes europeus foram muito efusivos ao dar as boas-vindas a Condoleezza

LONDRES - Ela foi tratada como uma estrela de cinema em todos os lugares onde esteve. Seu rosto apareceu em inúmeras primeiras páginas. Cada palavra sua foi notícia. Os líderes europeus foram muito efusivos em dar-lhe as boas-vindas. O chanceler da Alemanha, Gerhard Schroeder, pareceu um admirador apatetado na porta do camarim. Seu discurso em Paris foi o assunto mais quente da cidade e as aparições fugazes dela em uma capital após a outra simplesmente aumentaram a percepção de glamour e poder. Em poucos dias, Condoleezza Rice se transformou na Bette Davis da diplomacia. Se essa foi uma ofensiva de charme ou o que uma autoridade chamou de "campanha do abraço", funcionou muito bem. Depois de um longo e penoso afastamento, a Europa se apaixonou de novo.

E quando as cortinas se fecharam sobre a estréia no exterior da nova secretária de Estado dos EUA, a tentação foi dizer que finalmente o cisma do Iraque foi superado e começou um novo capítulo nas relações entre EUA e Europa. Isso poderá até ser verdade. "Tudo tem a ver com o humor, e o humor definitivamente mudou", disse Denis MacShane, ministro da Grã-Bretanha para a Europa.

A França e outros críticos europeus de bom grado aproveitariam a oportunidade de um novo começo proposto por Condoleezza, previu ele. "Todo mundo se volta para Paris na esperança de uma nova era para a diplomacia." Sinais do degelo foram abundantes. A semana passada viu a primeira reunião da Otan em solo francês em 40 anos, com a presença da bête noire da França, o secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld.

George Bush jantará em privado com o presidente francês, Jacques Chirac, e estará com Schroeder numa visita à Europa este mês. Até os socialistas espanhóis querem beijar e fazer as pazes. Mas, se esta reconciliação transatlântica for para ter uma base sólida, será preciso mais que boas impressões e melhoramentos de apresentação, dizem as autoridades. Ambos os lados têm uma sério trabalho a fazer.

"Bush está fazendo este gesto magnânimo vindo a Bruxelas. Maravilhoso. Mas queremos que Bush mude", disse um diplomata europeu. "Não está correto dizer simplesmente que nós ajustaremos nossa pauta à deles."

Americanos influentes acreditam que o Iraque expôs uma divergência fundamental no modo de ver o mundo que não desaparecerá subitamente da noite para o dia.

No seu livro, Of Paradise and Power (Do Paraíso e do Poder), Robert Kagan aponta para "um grande cisma filosófico no Ocidente" que, pela primeira vez, levou "uma maioria de europeus a duvidar da legitimidade do poderio e da liderança global dos Estados Unidos".

No âmago deste dilema está a disposição sem precedentes pós-11 de Setembro dos EUA de exercerem seu poder imbatível - e o desejo da Europa de controlá-lo, diz Kagan.

William Drozdiak, escrevendo na publicação Foreign Affairs, observou que Washington "está aprendendo da forma mais difícil que até mesmo a única superpotência do mundo precisa de aliados". Para manter seus amigos, os EUA precisam ceder "um papel mais atuante" para a União Européia.

Obviamente que Condoleezza quer fazer as pazes. Mas suas declarações em questões fundamentais foram estritamente conformistas, seguindo as desgastadas posições da Casa Branca do primeiro mandato de Bush. Se ela tem as próprias idéias sobre política, guardou-as para si mesma.

Apesar dos pedidos europeus para um maior envolvimento na questão entre Israel e Palestina, ela recusou um papel de mediadora e continua a seguir a pauta do primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon. Como o presidente Bush, ela foi mais dura em relação ao Irã e à Síria do que seu predecessor, Colin Powell.

E sua conversa sobre "diplomacia transformadora" em busca da liberdade e valores democráticos partilhados - fielmente repetindo o discurso de posse evangelizador de Bush - sugeriu, no mínimo, um posicionamento ideológico mais endurecido.

Muito valor foi dado à partida de falcões da administração como John Bolton e Douglas Feith e à nomeação por Condoleezza de realistas para cargos importantes no Departamento de Estado. Os europeus esperam que isso prenuncie uma atitude mais colaborativa e menos confrontativa. Tony Blair afirma que a política dos EUA está evoluindo.

Mas embora ela tenha tratado do problema de imagem dos EUA, não ficou claro quão longe ela pode ir ou irá para mudar o comportamento dos EUA em tempo real. Seja ela um superestrela internacional ou não, sua posição política em âmbito doméstico é intrinsecamente fraca.

Seu poder em Washington repousa exclusivamente sobre sua relação pessoal e acesso a Bush. Até agora, ela não se atreveu a desafiar a voz de seu mestre.