Título: Gasto improdutivo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/04/2005, Notas & Informações, p. A3

Para ressaltar o que ele decerto imagina serem os êxitos das políticas sociais do seu governo, o presidente Lula cobrou dos ministros da Fazenda, Antonio Palocci, e da Casa Civil, José Dirceu, precisão semântica ao falarem do assunto. Diante do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social, reunido quinta-feira no Planalto - e de improviso, como aprecia -, Lula repreendeu os dois principais membros de sua equipe por usarem o termo gastos, em vez de investimentos, quando abordam, como fizera Dirceu, pouco antes, a questão dos recursos federais aplicados nos programas da área social. Segundo Lula, trata-se de um "erro sociológico" brasileiro, porque dinheiro para a população mais pobre, como o do Bolsa-Família, "é um dos mais preciosos investimentos deste país", pelos seus efeitos multiplicadores para a economia. Isso pode ser verdadeiro, ou não, mais provavelmente não, mas não vem ao caso. Preciosa mesmo - e equivocada - foi a observação do presidente. Pois não há erro, muito menos sociológico, na terminologia. E não só no Brasil, mas em toda parte, é corriqueiro o emprego da palavra gasto para inversões no campo social, entre outras, e da palavra investimento, para fins econômicos. Nem por isso, os gastos sociais eficientes deixam de ser considerados investimentos preciosos - como são os casos dos gastos com saúde e educação.

A admoestação faz sentido, porém. Ante o desconforto da sociedade com a gastança no governo - para a máquina aparelhada e não para a maioria necessitada - e com uma carga tributária superior a 1/3 de tudo o que o País produz, Lula quer que o léxico oficial tire proveito publicitário do sentido positivo do termo investimento e evite, por suas conotações negativas, a expressão gasto. Com isso, agrega o outro conceito ao seu vasto repertório de metáforas triunfais, recém-enriquecido também por uma alegoria natatória. "Muitos (governos anteriores, naturalmente) tentaram e não conseguiram. E nós chegamos, atravessamos o Canal da Mancha. Estamos agora em terra praticamente firme", vangloriou-se perante o Conselhão o auto-intitulado "demônio de Garanhuns".

Desde 1994, há quem atravesse a Mancha pelo túnel, mas essa é outra história. O ponto é que, ao enveredar pelas rarefações da sociologia da linguagem, Lula se expôs sem querer a uma analogia que não haverá de lhe ser lisonjeira. Substitua-se dinheiro por tempo e pergunte-se se o tempo que o presidente vem dedicando à reforma ministerial nos últimos quatro meses - sim, porque o assunto entrou na pauta palaciana em novembro, em seguida às eleições municipais - é investimento ou gasto. Adotando-se a escala de valores da sintaxe presidencial, o tempo cada vez maior por ele empatado nos acertos para a mudança do Gabinete seria um bem para os brasileiros: um investimento, portanto. Ora, como isso não passa pela cabeça de nenhum brasileiro, fora os eventuais beneficiados do mexe-mexe, a palavra não serve.

"Gasto", ensinou Lula a ministros e conselheiros, "é quando há desperdício." Por esse critério, outra coisa não serão as horas e mais horas dissipadas em conchavos para essa reforma que o autonomeado "técnico da seleção'' - esquecido talvez de que dera o cargo a José Dirceu em janeiro do ano passado - acabou de adiar mais uma vez. Sendo claro como o dia que a mexida consiste essencialmente em mercadejar a presença do PMDB e do PP na já opulenta coligação reeleitoral de 2006, o desperdício não é apenas enorme: é indecente. Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito para administrar o País dos que nele votaram e dos que, não o tendo feito, também têm as suas vidas afetadas pelo que faz ou deixa de fazer o governo - e também custeiam o seu sustento.

Como parece não haver hipótese de que a reforma, pelas suas motivações, irá proporcionar um salto de qualidade numa das mais incompetentes administrações federais de que se tem lembrança, no limite não faria diferença para os destinos da população se, em vez de gastar o tempo que já gastou pensando e conversando sobre o assunto, Lula o tivesse gasto pensando no Corinthians ou conversando sobre a arte de churrasquear. Eis por que o adjetivo indecente não é um despropósito, e o substantivo gasto, na acepção que lhe deu o presidente, se aplica sem tirar nem pôr às tratativas, de que se ocupam igualmente os ministros do núcleo político do governo, em torno de uma reforma alheia às reais preocupações da sociedade.