Título: A USP na zona leste
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/03/2005, Notas & Informações, p. A3

E nquanto o governo federal está aproveitando a reforma universitária para tentar obrigar todas as instituições públicas de ensino superior do País a adotar o polêmico sistema de cotas para o ingresso de estudantes pobres, negros e oriundos da rede estadual ou municipal de 1.º e 2.º graus, a pretexto de promover inclusão social, a Universidade de São Paulo (USP) e o governo paulista optaram por uma estratégia alternativa para assegurar a democratização do acesso ao ensino superior.

Concebida em 2002, a receita foi criar um campus na zona leste, uma das mais pobres da cidade, com 4,5 milhões de habitantes. E, em vez de oferecer cursos tradicionais, cujo mercado profissional hoje se encontra saturado, como direito, medicina, engenharia e comunicações, e cujos vestibulares exigem sólida formação dos candidatos, a decisão foi abrir cursos novos, como sistemas de informação, ciências da natureza, gestão de políticas públicas e tecnologia têxtil. Além de estarem localizados em setores com grande demanda de mão-de-obra especializada, eles também têm a vantagem de exigir dos vestibulandos menos conhecimento do que o requerido na disputa pelos cursos mais antigos da USP.

Embora essa experiência seja inédita e, por isso mesmo, ainda dependa de uma avaliação do perfil socioeconômico, da origem escolar e das aspirações profissionais dos candidatos aos próximos vestibulares, os resultados obtidos na seleção dos primeiros 1.020 estudantes do novo campus, pela maior universidade brasileira, parecem animadores.

Enquanto na Cidade Universitária, situada na zona sul, somente 10% dos estudantes são negros, nas instalações da zona leste a média é superior a 21%. Além disso, enquanto nas unidades tradicionais da USP apenas 29% de seus alunos vieram da rede pública de 1.º e 2.º graus, nos cursos do novo campus a média é de 47%. Ou seja, quase metade do corpo discente vem de famílias que não puderam pagar escolas particulares para seus filhos.

Analisando-se a origem escolar do corpo discente a partir dos cursos noturnos, os que melhor atendem às necessidades dos universitários que precisam trabalhar de dia, para ajudar na renda familiar, as estatísticas são ainda mais surpreendentes. Em licenciatura e ciências da natureza, por exemplo, 83,3% dos discentes fizeram o ensino médio estadual. Em informática, mais de 60% dos alunos vieram da rede pública de 1.º e 2.º graus. Para se ter uma idéia da importância desses números, a média de candidatos oriundos de colégios públicos, nos últimos vestibulares da Fuvest, é de 35%.

O mais importante é que os alunos do campus da zona leste não entraram na USP beneficiados por algum tipo de favorecimento, como vem ocorrendo nas universidades federais que já puseram em prática o sistema de cotas. Pelo contrário, como não houve filtro racial, os novos "uspianos" foram os que obtiveram melhor nota, num exame rigoroso e disputado. "Em geral, eles viam a USP como algo longínquo, em todos os sentidos", afirma a pró-reitora de graduação, Sônia Penin.

A decisão de preservar a meritocracia é a maior diferença do modelo adotado pelo governo paulista, em relação com a política de cotas do governo federal. Na medida em que permite que vestibulandos mais fracos tenham preferência na matrícula, em detrimento de vestibulandos mais preparados, as cotas substituem o critério da competência pelos da raça e origem escolar. Os beneficiários dessa política entram na universidade, mas muitos não têm condições de acompanhar as aulas, o que os leva à reprovação ou a serem tratados como alunos de segunda classe, pelos professores.

Evidentemente, ainda é cedo para saber se esse êxito inicial da USP Zona Leste, em termos de democratização do acesso a um ensino superior gratuito e de boa qualidade, será confirmado com o tempo. Como afirma o frei David dos Santos, diretor-executivo da ONG Educafro, que organiza cursinhos para estudantes negros e pobres, os vestibulandos das famílias mais favorecidas ainda não teriam "descoberto" o novo campus. Mesmo assim, o fato é que, ao tomar a decisão de descentralizar suas atividades na capital e de levar cursos profissionalizantes para perto dos segmentos mais desfavorecidos da população, a USP tentou encontrar uma alternativa para preservar a meritocracia contra a demagogia. É essa disposição de inovar, sem concessões ideológicas, que merece aplauso.