Título: O primeiro passo
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/03/2005, Notas & Informações, p. A3

E mbora o crime organizado venha lavando cerca de R$ 10 bilhões por ano no Brasil, segundo a Polícia Federal, ao longo da atual década raras foram as pessoas condenadas por esse delito. O caso mais conhecido é o de um empresário paranaense que enviou ilegalmente US$ 16 milhões para o exterior. É pouco, principalmente quando se considera que, durante esse período, foram ajuizados 10,5 mil procedimentos com base na Lei 9.613/98, que disciplina a lavagem de dinheiro, e abertas mais de 4,9 mil investigações, em sete unidades da Federação. A prova mais inequívoca da ineficácia dessa legislação é dada pelo traficante Fernandinho Beira-Mar, que, apesar de estar numa prisão de segurança máxima no interior de São Paulo, continua recebendo dividendos de suas atividades criminosas. Para acabar com tanta impunidade e dar à polícia e à Justiça os instrumentos legais de que necessitam para combater o crime organizado, atingindo-o em seu bolso, o governo tomou a decisão de mudar radicalmente a legislação em vigor. Mas, em vez de se limitar a aumentar o rigor das penas de reclusão - o velho e ineficiente recurso que nossos dirigentes sempre utilizaram com o objetivo de "mostrar serviço" -, ele optou por desburocratizar os procedimentos penais e redefinir o próprio conceito de lavagem de dinheiro.

A idéia é asfixiar financeiramente o crime organizado, descapitalizando-o por meio de um sistema de bloqueio da circulação de bens e valores provenientes de atividades criminosas, independentemente de quais sejam elas. É esse o maior mérito do projeto que o governo, depois de colher sugestões da Justiça, do Ministério Público e da Polícia Federal, pretende enviar ao Congresso em abril.

Ao configurar o crime de lavagem, a legislação em vigor enumera oito tipos de delitos antecedentes, como narcotráfico, contrabando, seqüestro e corrupção, entre outros. É por isso que, como uma pessoa só pode ser condenada judicialmente por lavagem de dinheiro ser for comprovado seu envolvimento direto em um desses oito crimes, as leis vigentes são ineficazes. Essa precondição as torna inócuas para as grandes quadrilhas, que têm ao seu serviço advogados e executivos financeiros que jamais participam dos crimes antecedentes.

Acompanhando as reformas penais que estão sendo promovidas no mundo inteiro, o projeto elimina o requisito da precondição. Por ele, qualquer infração punível com pena de prisão superior a dois anos poderá ser considerada antecedente à lavagem de dinheiro. "A idéia é tratá-los de forma autônoma e ter um processo penal específico para o crime antecedente e outro para o crime de lavagem", explica o juiz Sérgio Moro, um especialista na matéria. Com isso, ficaria mais fácil para a polícia e para a Justiça deter "a profissionalização das lavanderias financeiras" e condenar a elite do crime organizado, diz ele.

Evidentemente, o projeto do governo ainda depende de vários fatores para dar resultado. Um deles diz respeito à formação dos próprios juízes e promotores, que não estão preparados para ler balanços e decifrar operações do mercado de capitais. Outro é evitar abusos que possam comprometer liberdades públicas e garantias funcionais. No início, o governo chegou a propor que os advogados - a exemplo do que hoje se exige de profissionais que trabalham em bancos, seguradoras, bolsas de valores, empresas de leasing e administradoras de cartões de crédito - fossem obrigados a delatar clientes por eles considerados suspeitos de participar de esquemas de lavagem. Contudo, como essa obrigatoriedade infringiria o código de ética profissional e o direito à confidencialidade entre cliente e advogado, de qualquer acusado, felizmente ela foi suprimida do projeto.

Foi a facilidade de transferência online de dinheiro, graças ao avanço da tecnologia e a proliferação de centros financeiros offshore, devido à globalização da economia, que multiplicou as possibilidades de lavagem de dinheiro no mundo inteiro. E, como entre nós as instituições de direito ainda seguem as anacrônicas linhas arquitetônicas do direito romano, com seu excesso de recursos e sua crença de que "a Justiça tarda, mas não falha" - em tempos em que a Justiça falha quando tarda -, o Brasil se tornou um verdadeiro paraíso para o branqueamento de dinheiro sujo.

Concebido sob uma saudável influência do direito anglo-saxão, o projeto do governo é o primeiro passo para se tentar reverter essa situação.