Título: Polícia suspeita que traidores facilitaram crime
Autor: Vannildo Mendes
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2005, Nacional, p. A4

Delegado não entende como missionária foi deixada desprotegida no dia da reunião, quando seus aliados sabiam do risco que corria.

ANAPU A polícia acha que havia um ou mais traidores infiltrados entre os colonos assistidos pela irmã Dorothy Stang, assassinada no dia 12 durante visita ao Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Esperança. A polícia não entende por que o grupo que deveria dar segurança à freira relaxou a vigilância justo no momento em que os assassinos chegaram. "É como se a freira tivesse sido levada para o sacrifício e entregue de bandeja por um judas aos matadores, que tiveram tempo para executar o crime e fugir tranqüilamente", raciocina o delegado Waldir Freire, da Polícia Civil do Pará. A freira foi ao assentamento no dia 11 para reuniões com os assentados de dois PDSs assistidos por sua Pastoral Religiosa e deveria ser acompanhada por uma segurança do PDS Esperança.

O delegado não entende por que a segurança deixou a freira desprotegida durante um largo tempo, na manhã do crime, a despeito do risco que ela sabidamente corria. A polícia também não compreende como os matadores se aproximaram dela, fizeram os disparos e fugiram sem ser incomodados ou perseguidos.

RAIVA

O primeiro tiro, disparado na cabeça quando ela lia a Bíblia para tentar dissuadir os assassinos, seria suficiente para matá-la, mas os pistoleiros atiraram mais. Ao todo, foram seis disparos de revólver 38 e pistola 7.65. "Eles mataram com raiva. Mesmo que os matadores sejam profissionais, o serviço não foi profissional", opina o delegado Mário Sérgio Nery, da Polícia Federal.

Como a morte da missionária servia a muitos interesses contrariados, a polícia supõe que o número de envolvidos no crime vai crescer. Até agora, além do capataz Amair Freijoli da Cunha, o Tato, que se apresentou ontem à polícia, outros três suspeitos estão com prisão preventiva decretada: os pistoleiros Rayfran das Neves Sales, o Fogoió, e Uilquelano de Souza Pinto, o Eduardo, e o suposto mandante do crime, o grileiro Vitalmiro de Moura Bastos, o Bida.

Mas a polícia já sabe que em algumas fazendas nos arredores de Anapu houve foguetório e festas regadas a cerveja quando a notícia do assassinato se confirmou. Essa informação pode levar ao indiciamento de outros fazendeiros e grileiros. Na selva em volta está em andamento uma operação de guerra com participação das Forças Armadas e das Polícias Federal, Rodoviária, Civil e Militar do Pará para capturar os suspeitos.

TEMPERO

Concebidos pela irmã Dorothy, os PDSs foram incorporados pelo Programa Nacional da Reforma Agrária porque atendem aos objetivos preservacionistas do governo. Mas o tempero socialista que a freira adicionou à idéia bateu de frente com os interesses dos fazendeiros e madeireiros, acostumados a expulsar pequenos agricultores para expandir seus domínios e a explorar os recursos naturais de forma predatória.

Esse modelo tem três atos. No primeiro, o ocupante ilegal extrai toda a madeira de valor; no segundo, devasta o que restar de mata para criação de gado ou plantação de monoculturas; no terceiro, ele abandona a terra quando o solo se esgota - já que recuperá-lo custa caro - e parte para a ocupação de novas áreas inexploradas da selva. Os colonos encontrados nesses locais são expulsos ou mortos.

Segundo a polícia, o grileiro Vitalmiro enriqueceu com essa prática. Os PDSs da irmã Dorothy contrariavam essa lógica e estimulavam os colonos a usar um modo de produção baseado na preservação ambiental. "Nos PDSs as culturas permanentes, como cacau e pimenta, são plantadas junto com árvores da selva, como mogno, cumaru e castanha-do-Pará", explica o técnico agrícola Geraldo Magela de Almeida, que trabalhava com a freira havia 15 anos.

Ela queria também verticalizar a produção, mediante a instalação de microindústrias de beneficiamento de produtos típicos, como o cupuaçu, banana e açaí. "Tudo isso contrariava os interesses dos grandes proprietários, muitos deles detentores de documentação falsa das propriedades", explicou Magela.

A retirada intensiva de madeira devastou milhões de hectares de floresta na Terra do Meio, que já integra o chamado Arco do Desmatamento, uma faixa de destruição ambiental que corta a Amazônia de leste a oeste, passando pelo sul do Pará. Em Anapu e Pacajá, o ritmo de extração é alucinante: 5 mil metros cúbicos de madeira de lei são retirados por mês, o que corresponde a 2,5 mil árvores. A Associação de Madeireiros de Anapu e Pacajá garante que esse estoque de árvores é reposto e os prejuízos ao meio ambiente vêm, exclusivamente, da ação de grileiros, fazendeiros e exploradores clandestinos.

"Damos 1.200 empregos diretos e movimentamos mais de R$ 8 milhões na economia da região por mês, com um mínimo de dano ambiental. O governo não pode nos nivelar aos predadores", diz Hidelfonso de Abreu Araújo, vice-presidente da associação.