Título: 'É aqui que as ameaças terminam'
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2005, Nacional, p. A5

No cemitério de Murumuru, lavrador conta como entrou na lista macabra do Pará

MARABÁ No cemitério mal cuidado de Vila Murumuru, um povoado a 12 quilômetros de Marabá, o presidente do Sindicato de Trabalhadores Rurais do município, Antônio Gomes, mostra a sepultura nua de seu antecessor no cargo. José Pinheiro Lima, o Dedé, sua esposa Cleonice e seu filho Samuel, de 15 anos, mortos por um pistoleiro em 9 de julho de 2001, foram ali enterrados no dia seguinte. "É aqui que as ameaças terminam", comentou Gomes, ao pé da cova, no final da manhã calorenta da última sexta-feira. Nos meses que antecederam a tragédia, Dedé, 59 anos, estava na lista dos ameaçados de morte divulgada pela Comissão Pastoral da Terra de Marabá. Gomes, 47 anos, está na relação mais recente. É um dos 35 marcados para morrer no Pará. "Eu tenho medo, mas não é por isso que eu vou abandonar a luta", diz. Na semana passada, Gomes esteve em outro cemitério - o de Anapu, onde foi enterrada a irmã Dorothy Stang. Na mesma semana, chorou outro morto, o sindicalista Soares da Costa Filho, assassinado em Parauapebas no dia 15. Eram amigos e tinham estado juntos há um mês. Dos que já se foram há mais tempo, todos integrantes das listas macabras, conhecia, bem, pelo menos meia dúzia, entre eles o padre Josino Tavares, de forte influência em sua formação de católico praticante da Teologia da Libertação. A morte é freqüente nos sonhos que tem. "Já levei tiro, já vi meu corpo cercado de velas, já ouvi discursos no meu enterro, mas não esquento a cabeça com isso", diz.

Casado, quatro filhos, posseiro antigo de 30 alqueires em Tracuá, a 240 quilômetros de Marabá, onde tem 30 cabeças de gado, roça e fruteiras nativas, é presidente do sindicato desde junho de 2003. O mandato é de quatro anos. A entidade tem 17 mil associados, 6 mil deles em dia, sede própria necessitando de reforma urgente e orçamento de R$ 5 mil mensais. Gomes recebe um pró-labore de R$ 350,00 por mês, mais despesas pagas.

Dos sindicatos rurais paraenses, o de Marabá é, desde os tempos do finado Dedé, um dos poucos da linha que defendem a conquista da terra na base da invasão de terras improdutivas. Coordena, hoje, nove acampamentos em que 1.300 famílias querem, do Incra, a desapropriação de 130 mil alqueires, todos eles ocupados por fazendeiros. "As ameaças partem deles", acusa o sindicalista. Elas chegam pelo telefone de sua residência, conta. Na mais recente, no final do ano passado, a voz anônima disse a um dos filhos de Gomes que ele ia ser morto. Em outras, diz ter ouvido, do outro lado da linha, o mugido de um boi, seguido da frase "gado aqui berra mais alto do que invasor".

Maranhense de Olho d'Água das Cunhãs, e filho, com 12 irmãos, de lavradores pobres e sem terra, Gomes, que estudou até a primeira série do segundo grau, perdeu o pai cedo e foi criado por um padrinho catequista. "Desde pequeno que eu entendo de defender os pobres", diz. Foi agricultor em terra alheia, em São Sebastião (GO), onde conheceu e trabalhou com o padre Josino. Em 83, mudou-se para o sudeste do Pará, com a família, para conquistar, no pé e no braço, as terras ainda virgens do Tracuá. Manteve a ligação com a igreja católica de Marabá, fazendo trabalho comunitário. Em 1990 virou delegado do sindicato nesta região, à época um forte pólo de extração de madeira. "Aí eu provei a primeira ameaça", diz, atribuindo-a a madeireiros clandestinos incomodados com um projeto de exploração de madeira da própria comunidade do Tracuá. Com a segurança ameaçada, foi retirado da área pela igreja. Quando o clima esfriou, retomou a atividade sindical à qual se dedica até hoje.

Jeitão tranqüilo, voz pausada, 1,65 de altura em 73 quilos, Pipira, como também Gomes é conhecido, é mais de ação do que de discurso ideológico. Empenha-se, nos últimos anos, em respaldar os nove acampamentos.

No cemitério de Murumuru, olhando o que sobrou de Dedé e de parte de sua família, Gomes lembrou que até hoje, quase quatro anos depois do tríplice assassinato, a Justiça ainda não revolveu o caso. "Se chegar a minha vez, vai ficar por isso mesmo também", diz Gomes. "Mas eu tenho fé que não chega, porque eu entro por uma rua, mas saio pela outra."