Título: Grileiros dominam quase 12% das terras do País
Autor: Roldão Arruda
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2005, Nacional, p. A5

De acordo com estimativas conservadoras, total de áreas griladas no território nacional supera os 100 milhões de hectares, a maior parte na Região Norte.

O assassinato da freira americana Dorothy Stang voltou a pôr em evidência um dos maiores e mais antigos problemas fundiários brasileiros: a grilagem de terras. De acordo com estimativas conservadoras do governo federal, o total de terras no País sob suspeita de serem griladas é de aproximadamente 100 milhões de hectares. Isso representa quatro vezes a área do Estado de São Paulo, quase 12% do território nacional. Na opinião do deputado Raul Jungmann (PPS-PE), a grilagem, que pode ser definida como apropriação indevida de terras públicas, por métodos violentos ou não, "tem sido um dos mais poderosos instrumentos de domínio fundiário no meio rural brasileiro". Jungmann foi ministro do Desenvolvimento Agrário no governo Fernando Henrique Cardoso e o principal responsável pela edição do Livro Branco da Grilagem - um amplo estudo sobre o tema.

Foi lá que apareceu a estimativa dos 100 milhões de hectares grilados, que ainda baliza debates sobre o assunto. No começo do ano passado, ao pôr em andamento um programa de identificação de propriedades rurais, com recursos do Banco Mundial, o presidente do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Rolf Hackbart, usou outro indicador para se referir ao problema.

Responsável pelo cadastro nacional de terras, Hackbart disse que do total de 850 milhões de hectares que compõem o País, só 418 milhões estão devidamente registrados. Descontando-se a área das cidades, rios, lagos, estradas, ainda sobram 200 milhões de hectares cujos títulos de propriedade estão sob suspeita. A probabilidade de que mais da metade disso seja de terras griladas é enorme.

A face mais visível da grilagem é a da violência - quando o grileiro contrata pistoleiros para expulsar posseiros, seringueiros, índios e outros moradores que encontra na área pública da qual pretende se apropriar. Irmã Dorothy tombou com seis tiros por defender esses moradores.

A face menos visível é a da corrupção. Ao mesmo tempo em que expulsam antigos moradores, os grileiros falsificam documentos de propriedade, para mais tarde vender a terra a produtores rurais interessados na agricultura - especialmente nas áreas de fronteira agrícola. Para isso sempre contaram com a cumplicidade de cartórios de registros de imóveis.

No Livro Branco, a equipe de Jungmann dizia que era possível encontrar exemplos notórios de cartórios "contaminados pela fraude" no Amazonas, Pará, Acre, Goiás, Amapá e Roraima - estados onde se concentra a maior parte dos 100 milhões de hectares que seriam grilados. Entre os cartórios figura o da comarca de Altamira - ao qual pertence Anapu.

PORTARIA

No seu segundo mandato, Fernando Henrique jogou pesado contra os grileiros. Em 1999, baixou uma portaria que obrigava todos os donos de áreas com mais de 10 mil hectares a renovarem o cadastro de propriedade. Quem não o fizesse podia continuar com o título de propriedade, mas perdia o registro no Incra e a possibilidade de obter financiamentos.

Além disso, o instituto passava a considerar as áreas sem registro revalidado como áreas públicas e ia à Justiça para tentar reavê-las. No final do governo Fernando Henrique, as disputas judiciais originadas desse processo envolviam 61 milhões de hectares.

Um dos casos mais emblemáticos foi o do fantasma Carlos Medeiros. Esse era o nome de um português, de existência nunca comprovada, que uma quadrilha utilizou para amealhar ilegalmente um conjunto de 9 milhões de hectares de terras públicas. Era quase 1% do território nacional.

Outro tiro contra a grilagem veio com a Lei 10.267, promulgada em agosto de 2001, e regulamentada em outubro do ano seguinte. Ela derrubou a autonomia dos cartórios, obrigando todos os pedidos de registro e transações de imóveis a serem previamente autorizados pelo Incra e a Receita Federal. "Derrubamos o mecanismo de legalização da grilagem", disse Jungmann.

Ao deixar o governo, Fernando Henrique também já havia acertado recursos com o Banco Mundial para um programa de reaparelhamento dos institutos estaduais de terras e a execução do programa de recadastramento nacional - com o uso de informações obtidas por satélites.

Com a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, o processo perdeu velocidade. As normas técnicas necessárias para a execução da Lei 10.267 só ficaram prontas em novembro de 2003 e o processo de recadastramento georreferenciado voltou a andar no início de 2004. "Com a mudança de governo, o atraso era inevitável", justificou o gestor da área de cadastro do Incra, Edaldo Gomes. "O atraso também se deve ao fato de o governo anterior ter enfraquecido a máquina do Incra", completou.

A interdição de 8 milhões de hectares no sul do Pará, anunciada na quinta-feira pelo governo, também não constitui novidade. Esse tipo de iniciativa, destinada a reduzir o apetite dos grileiros, uma vez que é impossível obter títulos de propriedade em áreas de reservas, já havia sido largamente empregado pelo governo anterior.