Título: Médicos apóiam aborto sem BO
Autor: Lígia Formenti
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/03/2005, Vida&, p. A23

Associação Médica Brasileira, com 250 mil sócios, recomenda que norma da Saúde desobrigando documento seja seguida A Associação Médica Brasileira recomendará a seus 250 mil sócios em todo o País que sigam a norma técnica feita pelo Ministério da Saúde que torna desnecessária a apresentação do Boletim de Ocorrência para a realização do aborto em casos de estupro na rede pública de saúde. O diretor da AMB e presidente da Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Edmundo Baracat, avalia que a norma evita uma série de percalços para a mulher, que já apresenta um histórico de violência. "Ela reduz a burocracia. Isso é um grande avanço." Apesar da posição contrária exposta pelo presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Nelson Jobim, o Ministério da Saúde informou ontem que manterá integralmente o texto. "Não estamos legislando sobre nada. Não há, no Código Penal, nenhuma indicação de como tem de ser feito o atendimento", disse Regina Viola, da área de Saúde da Mulher do Ministério da Saúde, em Brasília.

Ela garante que a norma apenas reflete algo que há anos ocorre no País. "Vários hospitais já dispensam a apresentação de ocorrência policial. Nós apenas vamos padronizar tal procedimento."

Anteontem, Jobim contestou a norma, dizendo que ela não tem valor legal. Ontem, foi a vez do conselheiro federal da OAB por Pernambuco, Ademar Rigueira Neto, designado para relatar o caso. "Sem o boletim de ocorrência, o médico não vai ter em mãos qualquer instrumento que lhe possa garantir que aquela pessoa que está solicitando uma intervenção para o aborto foi vítima de um estupro", afirmou. Para ele, a norma abre um precedente para a "indústria do aborto". A decisão oficial da OAB, no entanto, somente será definida segunda.

Por conta do posicionamento de Jobim, o ministro da Saúde, Humberto Costa, sugeriu ontem que seja realizado um debate com o STF e a sociedade civil. Embora tenha deixado claro que não quer entrar em enfrentamento com a Justiça, ele defendeu a nova norma. "O que o ministério fez foi, simplesmente, uma leitura adequada da lei, que define a possibilidade de aborto nas situações de estupro, sem determinar a necessidade de apresentação de boletim de ocorrência para a realização de curetagem cirúrgica ou de outra forma de abortamento", afirmou, em entrevista no núcleo do Ministério da Saúde, no Rio.

O próprio site da Prefeitura de São Paulo, por exemplo, indica como documentos necessários para a realização do aborto previsto em lei (nos casos de estupro ou de risco de saúde à mulher) apenas a cédula de identidade e um termo de consentimento, assinado pela gestante ou por seu responsável, e lista dez serviços onde o aborto legal pode ser realizado.

O coordenador do Programa de Violência Sexual e Aborto Previsto em Lei da Secretaria Municipal de Saúde, Osmar Colás, confirma. "Nunca houve necessidade do BO. Há apenas uma recomendação para que a mulher procure a delegacia. Não é uma obrigação, mas apenas uma ato cívico, para que o infrator não fique impune." Regina lembra que outros hospitais, no Pará e em Rondônia, seguem a recomendação.

O assessor da Comissão Episcopal e Pastoral para Vida e Família, da CNBB, José Maria da Costa, criticou a decisão. "A medida escancara o aborto. Ela é ilegal e espero que alguém de juízo neste governo impeça que ela vá adiante."

Para ele, sem a necessidade de apresentação de boletim de ocorrência, muitas mulheres poderão ir aos serviços de saúde, inventar um suposto abuso sexual para justificar o aborto.

Regina, no entanto, considera simplista tal raciocínio. "A norma técnica prevê um atendimento multidisciplinar. Ninguém será submetido à técnica antes de passar por uma avaliação, por entrevistas", disse a representante do ministério.

Pioneiro no serviço de atendimento de aborto legal no Hospital Jabaquara, em São Paulo, Colás também descarta tal possibilidade. "As pessoas imaginam que tudo é muito fácil. Não é assim", ressalta. Ele observa que muitas vítimas de violência temem fazer o boletim por puro medo do agressor.

COMISSÃO

Apesar da forte resistência de feministas, o grupo ligado à Igreja conseguiu um lugar na comissão tripartite que vai discutir mudanças na lei do aborto. Ontem, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil saiu vencedor numa eleição que escolheu o último representante da sociedade civil.

Feministas defendiam que o lugar vago fosse ocupado por um representante da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência ou de uma associação de magistrados. Foram vencidas. A escolha foi feita por internet. Agora, será a vez de Câmara e Senado escolherem seus participantes.