Título: 'Não se faz aborto sorrindo'
Autor: Laura Greenhalgh
Fonte: O Estado de São Paulo, 12/03/2005, Vida&, p. A24

À frente da Secretaria Especial de Políticas para a Mulher, Nilcéa responde a declaração do presidente do STF sobre nova norma Há um ano, quando assumiu a Secretaria Especial de Políticas para a Mulher, em substituição à ex-senadora Emília Fernandes (PT-RS), a médica Nilcéa Freire não imaginou que seus problemas seriam ainda mais complexos do que os que tivera como reitora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), entre 2000 e 2003. Ontem, teve a confirmação cabal: sim, são complexos. E quase tão arrebatadores como domar um furacão. À frente de uma secretaria com status de ministério, orçamento enxuto (R$ 24 milhões em 2005) e sinal verde para operar em conjunto com as demais pastas do Executivo, Nilcéa saiu a campo ontem para domar os efeitos de uma declaração bombástica feita na véspera pelo presidente do Supremo Tribunal Federal. Disse o ministro Nelson Jobim: médico que fizer aborto em vítima de estupro não comprovado pode vir a sofrer conseqüências jurídicas.

O alerta do ministro desabou sobre uma norma técnica revisada pelo Ministério da Saúde, que dispensa a apresentação de qualquer boletim ou perícia. Não está escrito no Código Penal, esbravejam as feministas. "É questão de conversa e entendimento", suaviza Nilcéa, uma secretária com tratamento de ministra e prestígio crescente junto ao presidente Lula. Aos 52 anos, mãe de dois filhos e divorciada, Nilcéa não hesita em dizer: "Não se faz aborto sorrindo. A palavra da mulher vale mais que qualquer BO." É o que prescreve como ministra e como médica.

Como é que a senhora entende a reação do ministro Nelson Jobim?

O ministro tem o direito de se manifestar. E eu tenho a certeza de que o Ministério da Saúde vai procurá-lo para conversar, colocando à sua disposição os técnicos que trataram da revisão da norma técnica. É preciso deixar claro que já havia uma norma técnica em vigor desde 1998, ou seja, ela apenas foi revisada em alguns pontos, como o do atendimento ao abortamento legal em caso de estupro. Daí é que se sugere a dispensa do BO como comprovação do estupro.

Até alguns anos, era necessário também um exame de corpo delito.

A rigor, o BO é um expediente burocrático, mas, acompanhado de exame pericial, tem valor de prova. Há muito tempo as organizações feministas pedem que o atendimento pericial seja feito nos próprios serviços de saúde para que as mulheres não precisem percorrer delegacias ou institutos médico-legais. O estupro é uma situação extrema. Sabemos que as vítimas tendem a fazer o quanto antes sua higiene pessoal, para apagar as marcas da violência. E os peritos reclamam, causam mais constrangimento. Tudo isso tem de ser levado em conta. O que o Ministério da Saúde tenta fazer, com o nosso apoio, é permitir um atendimento mais humanizado. Não estamos procurando contornar a lei ou estimular mecanismos de facilitação ao aborto.

A dispensa do BO não ajuda a encobrir a responsabilidade do estuprador?

Entendo que essa interpretação pode ser dada, mas não há a menor intenção de proteger criminoso. Em todos os serviços de atendimento à vítima de violência, a orientação é procurar a autoridade policial o quanto antes. A questão é que muitas mulheres têm como primeira reação livrar-se daquela carga emocional que está no seu corpo e acham que o primeiro contato deve ser com o médico, não com o delegado. Machucadas e fragilizadas, querem ter primeiro o atendimento de saúde.

Por que o ministro Jobim foi tão avesso à dispensa do BO?

Não sei. Quando nós anunciamos o Plano Nacional de Políticas para as Mulheres, em dezembro, onde está prevista a formação de uma comissão tripartite para a revisão da legislação punitiva do aborto, Jobim surpreendeu-nos ao se manifestar a favor da legalização do aborto. Ele até justificou sua posição saindo em defesa da mulher pobre, sempre a mais prejudicada. Acho que houve alguma linha cruzada nos últimos dias.

Quando é que a comissão tripartite começa a funcionar?

Até o fim deste mês. Estamos montando a comissão que será composta por 18 membros - 6 do executivo, 6 do legislativo e 6 da sociedade civil. Estamos na fase do acatamento das sugestões e da escolha dos nomes.

A Igreja Católica estará presente? Diz-se que a CNBB quer entrar na comissão.

Seguramente a Igreja Católica estará representada. Mas, talvez, dentro de um colegiado maior, como o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs, Conic, que alberga várias denominações religiosas.

Esse diálogo ficará mais difícil com o deputado Severino Cavalcanti, um católico fervoroso na presidência da Câmara?

Já lhe disse que gostaria de marcar uma reunião para tratar dos projetos que estão na Câmara e dizem respeito às mulheres. Ele foi gentil, prometeu que me receberá na semana que vem. Uma coisa é a posição pessoal. Outra coisa é a posição que se ocupa. O deputado Severino já disse que, quando projetos relacionados ao aborto forem à votação, ele deixará a presidência da Casa para ir ao plenário e votar contra. Está claro o que ele fará.

A senhora entende esse gesto anunciado como isenção parlamentar ou manobra para causar impacto e fazer adeptos?

Ele não criará obstáculos, como não criou na votação da Lei de Biossegurança, que incluiu a liberação das células-tronco, assunto do qual também discordava.

Mas, no caso das células-tronco, ele não deixou a presidência para votar no plenário.

Tanto a posição do presidente da Câmara quanto a da Igreja Católica são conhecidas. Temos clareza de que a discussão não será fácil.

Há duas linhas de pensamento no que diz respeito à liberalização do aborto: uma é gradual, ou seja, defende a inclusão de mais um permissivo legal, ou seja, a interrupção da gravidez em caso de anomalia fetal grave. Outra é mais radical por defender a descriminalização do aborto. Qual dessas linhas tende a ter mais chance de sucesso?

É difícil avaliar qual é a correlação de forças para uma ou outra linha, por isso o governo Lula tem se mantido cauteloso. Nós vamos para a comissão tripartite com estudos científicos, pesquisas de opinião, pareceres de especialistas, levando em conta legislações mais liberais e mais restritivas, experiências internacionais distintas. O assunto é complexo e ninguém está propondo que se abra uma clínica de aborto em cada esquina.

Já há uma visão mais consensual em torno do aborto em caso de anencefalia?

Na época em que se escreveu o Código Penal, existissem os recursos científicos de hoje e o aborto por anomalia fetal grave estaria entre os permitidos.

Como médica, como a senhora lida com esse imbróglio?

Eu me sinto confortável. Eu me formei na convicção de que a nossa missão é sobretudo trazer conforto para as pessoas, melhorar a vida dos outros tratando da saúde, não da doença. Portanto, não estou em conflito com o juramento de Hipócrates. Um livro que tem me ajudado nessa fase é O Drama do Aborto, do médico Aníbal Faúndes. Recomendo a todos a leitura.

Quando o presidente do Supremo diz que o médico que fizer o aborto poderá sofrer conseqüências jurídicas, o que a senhora sente?

Jamais deixaria de atender uma mulher com uma complicação pós-aborto ou vítima de um ato de violência. Vamos ser coerentes, nenhuma mulher faz aborto sorrindo. Nenhuma mulher faz aborto porque quer! O desespero para interromper uma gravidez indesejada é tanto que são mais de 260 mil casos por ano de mulheres que baixam no sistema público de saúde, com complicações de abortos caseiros ou feitos precariamente em clínicas clandestinas. Essa é a realidade. Se não forem atendidas, poderão morrer de infecções generalizadas. Não estou nem falando no gasto adicional para os cofres públicos.

Como resolver essa situação?

Não basta fazer a prevenção da gravidez. Também devemos fazer a prevenção do aborto. Para isso as mulheres precisam ter acesso ao planejamento familiar, recebendo informação, orientação e meios. Hoje isso é dado de maneira muito irregular. Pode ser bem-feito num grande hospital, mas, lá no postinho de saúde, vai depender de quem está atendendo, da qualificação desse profissional e até da sua disposição pessoal. O Ministério da Saúde está insistindo em oferecer os métodos contraceptivos à população na certeza de que, junto com o método, vá também a informação.

Ministra, a senhora já chegou a conversar com o presidente Lula sobre aborto?

O presidente encara o Plano Nacional de Política para as Mulheres como um programa do seu governo, não como um programa da secretaria. Digo isso com toda a tranqüilidade. Eu mesma fiz a ele a exposição de todas as ações previstas no plano, incluindo as relacionadas ao aborto, e o presidente se mostrou tão interessado que falou: "Isso tem de ser divulgado em cadeia nacional e por você." Lá fui eu para a televisão e para o rádio, em rede. Nenhum outro presidente fez isso. Ficou claro para os ministros que o presidente está avalizando tudo. Não é à toa que hoje a secretaria articula ações em diferentes ministérios - Minas e Energia, Trabalho, Ciência e Tecnologia...

É dada como provável a substituição do ministro Humberto Costa, na pasta da Saúde, pelo ministro Ciro Gomes, da Integração Regional. Isso é bom ou ruim?

Humberto Costa tem sido um grande parceiro. Não sei se fica ou não fica, isso não me compete comentar. Mas sei também que o ministro Ciro Gomes é outro aliado. No 8 de março, ele nos procurou para que designássemos alguém para ir à sua terra natal, Sobral (CE), participar dos eventos pelo Dia Internacional da Mulher. Ele tem sido ótimo. Se não for, reclamaremos com Patrícia Pillar.