Título: Efeitos nefastos das cotas
Autor:
Fonte: O Estado de São Paulo, 14/03/2005, Editoriais, p. A3

Ao obrigar as universidades públicas a adotar o sistema de cotas, a fim de democratizar o acesso ao ensino superior e promover a inclusão social, o Ministério da Educação (MEC) converteu os exames vestibulares em objeto de litígio judicial e levou os reitores a tomarem iniciativas incompatíveis com os padrões éticos que devem reger a vida acadêmica. Dois fatos recentes, ambos ocorridos em Curitiba, refletem o tumulto jurídico e político que a substituição do sistema de mérito nos vestibulares por critérios de origem racial e escolar começa a causar. O primeiro fato foi a decisão do titular da 3.ª Vara da Justiça Federal dessa cidade em favor de uma jovem que, apesar de seu desempenho no vestibular para o curso de zootecnia da Universidade Federal do Paraná (UFPr), foi preterida por duas candidatas beneficiadas pelo sistema de cotas, mas com pontuação bastante inferior. O segundo fato foi a sentença do titular da 7.ª Vara da Justiça Federal em favor de outro jovem na mesma situação. Tendo obtido 611,3 pontos na disputa de uma das vagas do curso de engenharia química na UFPr, ele foi preterido por candidatos "cotistas" que alcançaram apenas 489,3 pontos.

Nos dois casos, o Judiciário obrigou a UFPr a matricular os candidatos excluídos da lista de aprovados em razão da política de cotas. Com isso, o que mais se temia infelizmente começou a ocorrer. Ou seja, a manifestação de tensão social e racial num espaço escolar que sempre foi marcado pelo convívio acadêmico. Como esperar que esses estudantes, os favorecidos pelas cotas e os que tiveram seus direitos garantidos por via judicial, possam manter um bom relacionamento ao longo do curso? De que modo seus professores poderão lhes dispensar o mesmo tratamento e fazer as mesmas exigências, já que sua formação escolar é desigual?

Tão grave quanto a criação de um explosivo sistema de castas no corpo discente foi o comportamento dos atuais dirigentes da UFPr nesse episódio. Como a Constituição é clara quando afirma que todos são iguais, "sem distinção de qualquer natureza" e "sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação", desde o início eles sabiam que os tribunais acolheriam os recursos dos vestibulandos prejudicados pelo sistema de cotas. Por isso, além de retardar a remessa das listas de aprovação solicitadas pelo Judiciário, eles as enviaram sem a pontuação alcançada pelos aprovados, dificultando assim a ação da magistratura. E, por fim, pediram que o processo tramitasse em "segredo de Justiça".

O primeiro desses expedientes resultou numa multa de R$ 60 mil por dia de atraso, aplicada ao reitor Carlos Moreira Júnior. Já o segundo culminou numa humilhante advertência. "A publicação da lista de aprovados unicamente por ordem alfabética, sem menção à classificação obtida por eles, atenta contra a transparência que se espera", afirmou o juiz Mauro Spalding, da 7.ª Vara da Justiça Federal. Quanto ao pedido de que a discussão judicial ocorra em sigilo, foi sumariamente rejeitado. Se o vestibular é público, por que dúvidas quanto aos seus resultados não podem ser de conhecimento público?

Esses são apenas alguns dos efeitos desastrosos da política de cotas que pretende instituir a violação de direitos líquidos e certos. Além disso, na prática ela abre caminho para a discriminação e para o aparecimento de um problema que, apesar de todas suas perversas desigualdades sociais, o País jamais teve. Ou seja, o ódio racial. Ao cindir a Universidade pública entre brancos e negros, sob a cândida e altruísta justificativa de corrigir distorções seculares, o MEC desprezou a miscigenação de que o Brasil sempre se orgulhou.

O mais grave é que, desde a ascensão do PT ao poder, em nenhum momento ele enfrentou aquele que é o principal fator de reprodução da pobreza: a má qualidade do ensino público fundamental e médio, que priva os seus alunos da escolaridade de que necessitam para se classificar em um vestibular e ascender profissionalmente. Após dois anos de gestão, o governo ainda não se deu conta de que a causa da desigualdade no acesso ao ensino superior é a oferta de uma educação pública de segunda categoria patrocinada por autoridades que se acostumaram a tratar os segmentos mais pobres da população apenas com favores e paternalismo.