Título: Democracia e transparência na estrutura sindical
Autor: Ricardo Berzoini
Fonte: O Estado de São Paulo, 16/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

O artigo 8.º da Constituição federal estabelece os princípios da organização sindical em nosso país. Como tantos outros artigos da Carta Magna, o tempo e a experiência prática amadureceram a convicção de que é necessário mudá-lo. A estrutura sindical ali prevista combina, de forma contraditória, elementos que tornam inexeqüível o enunciado do caput desse mesmo artigo: "É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte..." O texto constitucional manteve, em linhas gerais, a estrutura sindical herdada do Estado Novo, cuja filosofia se baseava na sustentação financeira compulsória, via Imposto Sindical, que permitia aos sindicatos, federações e confederações arrecadar recursos à total revelia dos representados. Essa forma de financiamento, combinada com a unicidade imposta, favorece que entidades que representam formalmente centenas de milhares de trabalhadores mantenham um colégio eleitoral de poucos, de mais fácil controle político, arrecadando dinheiro de todos em proveito de uma minoria. Tais entidades, sem vida democrática, não viabilizam as principais funções de uma organização sindical: a representação e a negociação participativas. Combinados com o poder normativo da Justiça do Trabalho, relativizado pela recente reforma do Judiciário, e com o instituto do juiz classista, cuja extinção tive a honra de encaminhar na Câmara dos Deputados, como parlamentar, esses dispositivos resultaram numa estrutura sindical pulverizada, de baixa transparência e pouca funcionalidade.

A reforma sindical, que será encaminhada ao Parlamento nacional na forma de um proposta de emenda constitucional e um anteprojeto de lei que explicita os demais compromissos assumidos, pretende exatamente dar passos firmes e seguros para alterar essa situação. Para tanto foi elaborada no Fórum Nacional do Trabalho, com a participação de lideranças empresariais e laborais, que se dispuseram a buscar consensos. Com certeza, não representa o ideal do governo, nem das diversas representações que trabalharam para a sua confecção. Mas é um passo decisivo para a democratização da negociação coletiva e da representação sindical.

A eliminação da unicidade imposta, pela qual não pode haver mais que um sindicato por base territorial, é um elemento fundamental de sua concepção. Representa um antídoto contra a acomodação e a inépcia, pois permite a concorrência entre concepções distintas de organização. É bem verdade que, para obter consenso, se manteve a possibilidade de os atuais sindicatos reivindicarem a exclusividade. Mas só a terão se tiverem quórum mínimo de filiados e estatutos democráticos que permitam a participação dos sócios.

Também a extinção de todas as contribuições compulsórias, substituindo-as por uma única taxa negocial, que só poderá ser cobrada se houver contratação coletiva e assembléia democrática e representativa, significa acabar com a arrecadação fácil do Imposto Sindical e outras cobranças abusivas.

O fim do poder normativo, introduzindo a figura da arbitragem pública ou privada e seus critérios específicos, permitirá uma negociação mais efetiva. Assim como no texto aprovado na reforma do Judiciário para os dissídios coletivos, a arbitragem só ocorrerá pela vontade das partes, e não como uma fuga à negociação, como ocorre hoje.

A introdução da representação dos trabalhadores nos locais de trabalho, que não foi consenso, mas que o governo assumiu a responsabilidade de incluir, é também um instrumento de modernização. Onde adotada, no Brasil e em outros países, é elemento de prevenção de conflitos, ao contrário do que receiam alguns empresários.

O Brasil tem hoje quase 20 mil entidades sindicais, entre patronais e de trabalhadores. Boa parcela não tem capacidade, funcionalidade ou mesmo vontade de realizar o autêntico papel sindical. Mas poucas deixam de exercer o direito de cobrar impostos e as demais taxas sindicais. E muitas interferem no legítimo direito de organização e associação, assegurado pelo artigo 5.º da Constituição, argüindo a unicidade.

Não temos ilusões. Fazer essa mudança afeta interesses, que serão mobilizados para evitá-la. Mas sabemos que o bom debate e a necessidade de entidades sindicais efetivamente representativas poderão ajudar o Parlamento a aperfeiçoar a proposta do Fórum Nacional do Trabalho e dar aos trabalhadores e empresários brasileiros uma nova base legal para o sindicalismo autêntico de que o Brasil precisa.