Título: Faca de vários e afiados gumes
Autor: DORA KRAMER
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/03/2005, Nacional, p. A6

Intervenção em hospitais no Rio presta-se ao mau uso de péssimos costumes político-eleitorais A decisão do governo federal de intervir na administração dos hospitais credenciados pelo Sistema Único de Saúde no Rio de Janeiro é daquelas medidas polêmicas e de óbvio potencial de risco político. Se intenções e gestos estiverem única e exclusivamente direcionados para a melhoria dos serviços e o foco for de fato o bem-estar e a melhoria do atendimento da população, terá valido a pena o esforço e até vencidas as desconfianças iniciais de que há política eleitoral de mais e empenho gerencial de menos no episódio.

Se, ao contrário, o ânimo operacional se arrefecer, a realidade não corresponder à propaganda, União e prefeitura engalfinharem-se em acusações como as que há tempos pautam o relacionamento de autoridades locais e nacionais na questão da Segurança, aí terá sido criada mais uma frustração para ser acrescida ao já enorme passivo de descrédito do cidadão em relação ao lugar a ele reservado na escala de prioridades do poder público.

Os fatos até agora recomendam atenção. A despeito de o prefeito Cesar Maia ter reivindicado anteriormente a entrega dos calamitosos hospitais à União, a ouvidos comuns soa algo alegre e ligeira demais a reação comemorativa da prefeitura, celebrando a intervenção como uma dádiva.

Pode até ser positiva do ponto de vista administrativo - embora ainda falte o prefeito explicar melhor as razões -, mas não deixa de ser um ato traumático e, como tal, é no mínimo estranho que seja tratado com ares de ironia.

O cidadão fica sem saber se o prefeito da cidade está falando sério ou se, na condição de pré-candidato à Presidência da República por um partido de oposição, está apenas aguardando a hora de rir por último - e melhor -, por expectativa de que a União se mostre incapaz de gerir o problema e esteja agora apenas contratando uma crise futura para ela mesma resolver.

Na seara das impropriedades de cunho municipal inclui-se, por exemplo, o prefeito chamar o secretário Nacional de Atenção à Saúde, Jorge Solla, de "bobão". Digamos que Solla não tenha ficado distante disso ao tratar como suspeito o fato de a prefeitura manter dinheiro de repasses federais em aplicações financeiras, mas a seriedade do tema não comporta certas extroversões, mais adequadas a arenas eleitorais.

No terreno federal, o disparate maior é conceitual. Há meses, mais de ano, o ministro da Saúde, Humberto Costa, vem sendo questionado publicamente em sua capacidade de gestão. As críticas partem do governo, que não esconde sua insatisfação.

Tanto que a cada vez que Costa é cotado - como agora - para deixar a equipe ministerial, a alegação nunca é de natureza política. Esta é usada como justificativa para ele ficar, pois precisaria do cargo para reforçar sua candidatura ao governo de Pernambuco.

Não há ninguém nem partido algum reivindicando seu cargo. É o presidente Luiz Inácio da Silva quem pretende substituí-lo por Ciro Gomes, por presunção de competência. Ora, se Costa é tido como ineficaz, como e por que entregar a ele um problema cuja resolução requer boa capacidade de gestão?

De duas, uma: ou o ministro não é incompetente coisa alguma - e nesta hipótese estaria sendo vítima de uma injustiça cometida por companheiros de partido e governo - ou a intervenção nos hospitais do Rio não é de ordem administrativa, não tem como foco a resolução do problema crônico de péssimo funcionamento da rede pública de saúde.

Tão - ou até mais - esquisito que o prefeito do Rio chamar um alto assessor do ministério da Saúde de "bobão" é o ministro da Saúde usar uma rede nacional de televisão para falar sobre uma decisão administrativa relativa a uma cidade do País.

Considerando que o ocorrido tem caráter jornalístico e, portanto, todo o Brasil tomou conhecimento dele nos noticiários de alcance nacional, o pronunciamento do ministro pareceu pautado pela necessidade marqueteira de mostrar-se ao País um ente capaz de providências. Quando não se contenta em tomá-las, mas faz questão de mostrá-las, mesmo recorrendo a formatos não apropriados, o governo federal está transformando uma providência em propaganda. Tal instrumento o obriga não apenas a normalizar a situação nos hospitais do Rio, mas a dar um legítimo show de competência.

Fica, por isso, no risco. Da mesma forma arrisca-se, em caso de sucesso de público e crítica, o prefeito a pagar alto preço quando celebra a intervenção, deixando entrever subjacente ao entusiasmo uma ferina torcida contra.

Último degrau

O campeonato nacional de incontinência, inconsistência e inconveniência verbais tem no presidente da Câmara, Severino Cavalcanti, um atleta de ponta. Com tendência ao suicídio moral, porém.

O mais recente conceito (?) exposto por ele em relação à reciprocidade de tratamento entre os Poderes Legislativo e Executivo, com referências comparativas escatológicas, revela mais que uma rudeza de espírito, traduz ausência de respeito próprio.

Elegeu-se para a presidência da Câmara, vai ficando patente, não um expoente do baixo clero, mas um porta-voz do baixo nível.