Título: Flores da democracia
Autor: Expedito Filho
Fonte: O Estado de São Paulo, 15/03/2005, Nacional, p. A12

Ninguém governa o tempo que governa. Há tempos medíocres em que se administra apenas o cotidiano. Há tempos de desordem em que se busca a ordem. Há tempos de fartura e há tempos de escassez. Poucas vezes temos que administrar e conviver com a História ao mesmo tempo. Governei quando a História se contorcia, quando as decisões eram escolhas de rumos e de mudanças. Saíamos de um governo autoritário para reconstruir a democracia. Não havia liberdade sindical, partidária, a atividade política era marcada pela discriminação e proibição. Havia partidos clandestinos e legais, grupos restavam na perspectiva de luta armada, os movimentos sociais eram reprimidos. A ordem legal era a do poder absoluto. Muitas esperanças surgiam além das possibilidades. Em meio a tudo isso, vivemos o que parecia ficção: Tancredo morreria. O ministério não era meu, eu não conhecia o programa de governo nem os compromissos de Tancredo. Eu pertencia a um Estado pequeno e pobre, não tinha o respaldo das elites econômicas nem da inteligência nacional formadora de opinião. Enfim, eu era um presidente sem legitimidade e condenado a não governar.

Meus horizontes eram a renúncia, a deposição, o descontrole do Estado. Procurei legitimar-me, abrindo e fazendo o maior pacote político já editado no Brasil. Legalização de partidos, sindicatos, fim da legislação autoritária. Os ventos da liberdade fizeram da imprensa a mais livre de todos os tempos. Eleições todos os anos. Convoquei a Constituinte. Busquei saídas para a economia e graças a essas experiências pudemos chegar do Plano Cruzado ao Real.

Não tivemos uma prontidão militar. O militarismo acabou. Os militares se profissionalizaram. Os trabalhadores passaram a ter participação nas decisões nacionais. Criamos uma sociedade democrática.

Crescemos o PIB per capita 99%, saldo comercial o 5.º do mundo, passamos da 8.ª para 7.ª economia industrial, o desemprego chegou a 2,36%, o menor da história, quase residual, a cidadania, o consumidor passaram a existir. Os programas sociais foram os maiores da história, introduzimos o social na agenda nacional. Meu lema era "Tudo pelo social". Nada entreguei, nada cedi.

A inflação de que me acusam não era minha e sim das perspectivas do governo que vinha. Subiu nas eleições como ocorreu nas últimas eleições. Passou de 5% para 82%. Mas os números macroeconômicos eram excelentes.

Não deixei hipotecas. Tive erros. Tive acertos. Mas fiz aquilo para o que Tancredo tinha sido eleito: implantar a democracia. Ela hoje é das maiores do mundo. Dizem os chineses: "Quando fores beber água em um poço, lembre-se de quem abriu o poço." Voltei a ser cidadão comum. O poder passou por mim e não me transformou. Orgulho-me de ter contribuído para meu País num momento decisivo de sua história. E em minhas mãos a democracia não teve suas flores murchas.

* José Sarney foi presidente de 1985 a março de 1990