Título: O espelho mágico
Autor: Flávio Tavares
Fonte: O Estado de São Paulo, 20/02/2005, Nacional, p. A11

A cada dia o Brasil demonstra, publicamente, que está superando sua crise de identidade. Já somos o que somos. Antes, éramos uma coisa e aparentávamos outra. Como os atores de comédia - obrigados a fazer rir mesmo na maior tristeza íntima -, representávamos o que não éramos, exibindo a ilusão de ser aquilo que nem sabíamos que pudesse existir. Ao escolher agora os seus presidentes, o Senado e a Câmara dos Deputados, formalmente os núcleos da democracia republicana, mostraram que o Parlamento brasileiro tem a coragem autêntica de dizer como é. Já não há hipocrisias. A avalanche que levou o alagoano Renan Calheiros à presidência do Senado, por exemplo, não é, apenas, a ressurreição da "era Collor", da qual ele foi um dos patriarcas, mas dos vícios daqueles anos, que o "impeachment" (ou renúncia-forçada) do presidente da República pretendia suprimir.

Tudo ilusão. Da "era Collor" restaram os vícios, o oportunismo camaleônico que muda de cor seguindo o sol, não as virtudes, escassas mas reais. E, por osmose, os restos chegaram aos tempos atuais, pois o sol é astro-rei e todos somos seus súditos.

Não se repita, por outro lado (como, por erro, o fizeram alguns) que o novo presidente da Câmara dos Deputados, Severino Cavalcanti, é "um diabo perdido", remanescente da mentalidade dos "anões do orçamento", o grande escândalo da nação anos atrás. Nada disso: Severino é o mais autêntico símbolo de uma corporação só interessada em si própria, exímia na distribuição de favores e prebendas, que tem 17 mil funcionários com régios salários (servindo a menos de 500 deputados) e quer ter ainda muito mais.

Autêntico, sem farisaísmo, ao assumir ele confirmou quais suas metas básicas, além de manutenção dos três meses de férias, chamadas de "recesso": o aumento da remuneração dos "nobres deputados" e funcionários, e a admissão de milhares de outros mais. Afinal, os novos prédios anexos ao Congresso, em plena construção, não podem ficar vazios. De lambuja, Severino (que é do partido de Paulo Maluf) esbanjou benevolências e "propôs" a prorrogação, por dois anos, do mandato de Lula como presidente da República, assunto sobre o qual nem sequer os áulicos de bajulação mais servil e absoluta se animavam a piar.

Os novos presidentes do Senado e da Câmara dos Deputados são a cara fiel da composição humana desses órgãos. Foram escolhidos em retribuição antecipada às benesses pessoais prometidas. Isso ajuda a explicar a derrota de Luís Eduardo Greenhalgh, com passado limpo e fama de jurista, que - na desvairada caça aos votos - prometia construir 80 modernas latrinas, ou banheiros, "para os nobres senhores e senhoras deputados que não têm esse serviço individual em seus gabinetes". A grande maioria desdenhou a visão parlamentar-escatológica de Greenhalgh e preferiu as ofertas mais perfumadas de Severino.

Claro: houve também o estilo de José Genoino, que viu nos bigodes de Greenhalgh os ditos cujos de Stalin e, olhando tudo com desdém (como se aos demais só coubesse a obediência), quis impor à Câmara o stalinismo com que dirige o partido governista.

Não se diga pejorativamente, portanto, que Calheiros é um "veterano collorido" (com "l" duplo), nem que Severino é amnésico por ter confundido o presidente Lula com o presidente Dutra. Isso não é grave. O poderoso Ronald Reagan, presidente dos EUA, ao chegar ao Brasil em 1981 disse estar muito honrado "em visitar a Bolívia" e há pouco, no Fórum Social, Lula chamou de "companheiro Menem" ao presidente da Argentina, Nestor Kirchner.

Isso é apenas desatenção. O grave é que tenhamos gente desatenta a nos ensinar como ser atentos. Severino é quem encaminhará as leis que nos hão de guiar e, se seguir pensando que estamos nos idos do presidente Dutra, de nada adiantará o espelho mágico que, agora, foi posto à sua frente.