Título: Quer um jardim, chame um jardineiro
Autor: João Mellão Neto
Fonte: O Estado de São Paulo, 18/03/2005, Espaço Aberto, p. A2

Na terça-feira passada o Brasil comemorou os 20 anos de retorno da democracia. Na quarta-feira deu-se o 15.º aniversário do Plano Collor. A democracia política foi conquistada em 1985, com a posse do primeiro presidente civil. Já a democracia econômica, esta demandou mais nove anos. Foi implantada somente em 1994, com a edição do Plano Real. Durante quase uma década a Nação conviveu, simultaneamente, com um regime político plenamente democrático e um regime econômico em tudo ditatorial. Se você que me lê tem menos de 35 anos de idade, com certeza não se recorda da série de loucuras que foram cometidas, na época, em nome do combate à inflação. Foram quatro pacotes. Em todos eles a economia nacional foi violentada, os direitos dos cidadãos foram suspensos e, no que tange à inflação, esta só viria a acabar definitivamente no Plano Real, curiosamente o primeiro pacote econômico não autoritário que se empreendeu. Vivi, como jornalista e comentarista de TV, cada um desses episódios. Fui um dos primeiros, na imprensa, a criticá-los. O pioneirismo tem um preço. Fui difamado, ofendido e espezinhado. Leitores e telespectadores me escreviam cartas malcriadas, tachando-me de derrotista, inimigo do povo e antipatriota. Vale a pena recordá-los aqui, até porque, com reza o ditado, um povo que se esquece de sua História se condena a repeti-la.

O Plano Cruzado desabou sobre nossa cabeça num fim de tarde de sexta-feira, 28 de fevereiro de 1986. Em essência, era muito simples. A partir daquela data todos os preços de todas as mercadorias, bens e serviços da Nação estavam tabelados e congelados. Quem ousasse majorar preços iria para a cadeia. O povo reagiu com entusiasmo. O presidente da República foi à TV e conclamou todas as pessoas de bem a colaborar com o governo, denunciando comerciantes inescrupulosos. Surgiram, assim, os milhões de "fiscais do Sarney". Um deles chegou a fechar um supermercado, em Curitiba, entoando o Hino Nacional. No primeiro comentário que fiz na televisão, afirmei que acabar com a inflação congelando preços era o mesmo que "tentar frear um carro segurando o ponteiro do velocímetro".

Quase fui demitido. Teimoso que era, nos dias seguintes persisti no argumento. Lembrei que o primeiro a tentar congelar preços foi o imperador romano Diocleciano, no século 3. Tudo o que ele conseguiu foi provocar o primeiro desabastecimento da História. Os comerciantes, a vender com prejuízo, preferem simplesmente estocar as suas mercadorias ou, então, vendê-las com ágio. Recordei também que, segundo qualquer manual básico de economia, o que causa inflação é o déficit público: o governo gasta mais do que arrecada, emite moeda para cobrir a diferença e esta, conseqüentemente, se desvaloriza, pelo aumento dos preços. Tudo em vão. Lá para julho de 1986, fiz uma palestra no Rio de Janeiro, expus esses raciocínios e fui estrepitosamente vaiado. Aprendi, assim, uma das grandes lições da política: o povo, sofrido, prefere ouvir mentiras que o embeveçam a verdades que lhe tirem as esperanças...

Já no início de 1987, o congelamento acabara, a inflação estava de volta e o País acabou entrando em moratória. Com o Plano Verão, em 1987, baixou-se um novo congelamento, ocorreu o previsível desabastecimento e, novamente foi tudo por água abaixo. O governo de Sarney terminou, em março de 1990, com uma inflação mensal de 90%.

Foi aí que veio o Collor. O seu plano era ainda mais diabólico. Reconhecendo que a inflação era causada pelo excesso de dinheiro em circulação, sua equipe econômica teve uma idéia "brilhante": além de congelar preços, como de hábito, tratou de "confiscar" todos os depósitos bancários, à vista ou a prazo, que excedessem a módica quantia de 50 cruzeiros. Toda essa dinheirama (algo como US$ 100 bilhões) ficou nas mãos do governo, que a devolveu depois de 18 meses, em suaves prestações mensais.

Novamente o teimoso, aqui, escreveu vários artigos, no Estadão, criticando o governo e reiterando que o plano não ia dar certo. Não adianta esvaziar a banheira se a torneira (os gastos governamentais) continua jorrando. Em pouco tempo ela vai estar cheia novamente. Nova espinafração geral. Numa palestra para empresários, após a minha exposição, ninguém bateu palmas. Um dos espectadores, presidente de empresa, me disse o seguinte: "Olhe, se você não tem amor pelo Brasil, por que não vai embora daqui?" Não fui. Em menos de quatro meses, como eu advertira, a inflação estava de volta. No ano seguinte o governo ainda tentou um novo congelamento, que, obviamente, não deu certo.

Por que, então, o Plano Real funcionou?

Simples. Foi o primeiro plano que não tentou violentar o mercado ou pegar os agentes econômicos de surpresa. Foi amplamente negociado com a sociedade e todo mundo sabia de antemão a data em que se daria a conversão da moeda. Ao mesmo tempo, o governo tratava de zerar o déficit público e abrir as importações para que houvesse concorrência e os preços não subissem. Herdamos uma dívida pública enorme, mas o custo valeu a pena. De forma democrática, sem arbitrariedades, a inflação caiu para níveis civilizados e assim permanece até hoje.

Como dizia o meu velho amigo e colega Roberto Campos, há dois tipos de economistas: os engenheiros e os jardineiros. Os primeiros elaboram um projeto "perfeito" e querem que, depois, a sociedade se vire para se adequar a ele. Os segundos são mais humildes: eles tão-somente preparam a terra, fertilizam, plantam as sementes e deixam que a natureza (ou o mercado) cuide do resto. Há que ter paciência e humildade. Mas são estes, justamente, os que dão certo. A economia não é uma obra de concreto, mas sim um jardim, composto por organismos vivos. Quem quer um jardim florido, pelo amor de Deus, não chame um engenheiro para construí-lo!